Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 157

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 partilhar as mesmas brincadeiras dos meninos, as mesmas conversas, ler as mesmas histórias, gostar do mesmo gênero de filmes e cultuar os mesmos heróis. No respeitante às suas colegas meninas enxergava, ainda sem entender, como um grupo ao qual não se adaptava facilmente, como o fazia e sentia no tocante aos meninos. Não se achava confortável dentro daquelas roupas de tecidos leves, cores amenas e cortes estranhos que escondiam ora cerca de três partes do corpo, ora, a depender do lugar, quase nada. Aos quatorze, quinze anos, no despertar da adolescência carregava corpo feminil que começava a exibir os primeiros contornos peculiares à idade, cabelos longos, lisos e bem cuidados, unhas eram apresentadas ao esmalte e lábios às mais variadas marcas e tonalidades de batons. As linhas do corpo bem definidas e seios salientes quase à mostra davam-lhe o toque final de gênero. Ruana, apesar de tudo, não se sentia psicologicamente confortável e começava a enxergar nas meninas, em particular as mais bonitas, atrativos que somente os homens em geral viam, mas não sabia muito bem o que aquilo significava. Passado mais algum tempo deu para vestir-se e comportar-se socialmente como menino. Esse comportamento novo foi notado no dia-dia pelos pais, parentes e amigos próximos que, observando sua atenção pelo mesmo sexo pensaram tratar-se de um típico caso de lesbianismo. A Grécia Antiga foi então revirada pelo avesso, a ilha de Lesbos revisitada e a história da poetisa Safo e sua companheira Átis foi, por fim, lida e relida, e até onde foi possível interpretada graças aos escritos de Platão. Não era. Ruana viu ser explorado o mais recôndito do seu ser. Psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e educadores foram exaustivamente consultados, chegando-se enfim à conclusão de que tratava-se de uma pessoa trans, denominação desconhecida até aquele momento por seus pais que, malgrado seu fervor religioso, aceitaram a nova situação, à luz do olhar episcopal da tolerância, acolhimento e respeito às diferenças. Aquela descoberta foi para si um alívio, pois que a partir dali, vencidas as barreiras naturais da família, passou a exercer sua sexualidade em plenitude. Com o auxílio de profissionais especializados começou a tomar hormônios masculinos, o que lhe permitiu radical mudança de aparência física, com modificação no contorno do corpo, surgimento de pêlos no rosto e aparecimento do pomo de Adão. Mudou os gestos, a voz e o nome. Daí que, para se transformar em Ruan, foi uma questão de tempo e adaptação. Nosso personagem mostrou-se um rapaz de feições agradáveis e muito ativo em suas relações, revelando-se assíduo frequentador de bares e boates, conquistador exímio, elegendo para compor seu séquito de namoradas quase sempre as mais bonitas e gostosas. 154