LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
imagens fulguradas dos mitos fenícios, e não nos meros símbolos dos anjos das
cartas e das linhas das mãos. Assim sendo, Leonora via em mim um ótimo
instrumento para experimentar suas previsões e prognósticos místicos.
Quando ela voltava do passeio e via minha cabeça vermelha como um
açafrão suado e, imbuída dos poderes da Deusa Astarteia, cuja divindade
empresta suas energias através das pedras seixos dos rios, e delas, Leonora fazia
uso para decifrar previsões modulando o calor das pedras em meu rosto quase
espectral, estes eram, inclusive, alguns dos arcaicos ritos da prostituição
sagrada, que era muito comum na Babilônia de Nabucodonosor e que Leonora
usava em nossas orgias sexuais. E isto, Ela fez logo que desenterrou meu corpo
da cova de sal, onde eu, moribundo, quase morto, jazia moído e cozido; quando
aproveitava para quebrar o resto dos meus ossos. Então predizia, sussurrando ao
meu ouvido, em tom metafísico e transcendental que a morte da geometria
estava próxima e que o mundo já tinha data certa para seu fim.
Leonora era uma flor nascida entre os nós de um arame farpado.
Esses são apenas alguns poucos fragmentos da personalidade de Leonora. Eu
não tenho o menor ressentimento em acusá-la de anjo ou demônio. Porque Nela,
era fácil se perceber distintamente duas formas de caráter. Leonora tinha a nítida
intenção de demonstrar que, se hoje era uma, amanhã seria outra. E isso me
fascinava ao mesmo tempo em que me aterrorizava. E tal demonstração era
convincente. Uma taça de vinho em suas mãos tanto poderia ser uma bela cena
Vê-la sentir o buquê do vinho pelas bordas da taça, como terrível era assisti-la
comprimindo-a até espatifá-la, deixando-a em cacos dilacerantes numa mistura
infernal de vinho, vidro e sangue, contraindo o rosto em angústia para em
seguida seus olhos se iluminarem demonstrando alegria infantil.
Vale ressaltar que nosso estar junto era ilusório e enganador. Não éramos
nada um para o outro. Apenas cúmplice de uma existência angustiada e cheia de
anseios. Leonora era lúbrica, libidinosa, verdugo, fada e musa. E apesar de
tantos e tantos predicados, das virtudes e dos vícios, eu nunca soube o que
escrever de Leonora. Apenas engasgo em seu nome: Leonora, Leonora,
Leonora...
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O relógio marca meia-noite. Nesse instante escuto o ding-dong tocar com
mais insistência. Arrasto-me penosamente até a porta. Universos foram criados e
destruídos; Eras pereceram em lapsos de tempo. Ando, ando e não saio do lugar.
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