Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 132

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 esse quadro tentando simplesmente convencê-los a serem mais razoáveis,sensatos, delicados, generosos, carinhosos e altruístas. Para minorar os problemas de relacionamento, devo eu mesmo ser o sujeito e objeto dessas mudanças. Ter a iniciativa de me tornar mais tolerante, paciente, desapegado dos meus interesses, valores e preconceitos. Com isso, passarei a não me incomodar tanto com as críticas, as negligências, desleixos, a falta de iniciativa dos outros. Devo então tornar-me indiferente ? Não, apenas compassivo com as fraquezas alheias e humilde em relação a minhas limitações. Da mesma forma como eu mesmo sou imperfeito, são passíveis de erros os meus pares. A opção por mudar (e melhorar) é individual e intransferível. Foi o que fez Gregor Samsa. Oprimido pelas responsabilidades familiares e profissionais, resolveu um dia se transformar radicalmente. De humano autônomo, cumpridor de deveres e capaz de se sustentar, resolveu tornar-se um insectoide, dependente da boa vontade de seus familiares em prover-lhe meios de sobreviver. Mas por que virar um inseto ? Não poderia manter sua forma humana e gradualmente expor-lhes seus novos pontos de vista convencendo-os da justeza de suas opiniões ? Se levarmos em conta a metáfora que a palavra metamorfose representa para o conto kafkiano, podemos supor apenas que houve a passagem de um estágio para outro, não necessariamente de maior evolução, como ocorre com a borboleta, por exemplo. Ora, na literatura, a passagem de um personagem do formato antropomórfico para o zoomórfico tem sido observada em pelo menos 3 situações: aquela na qual constitui um castigo (os marinheiros de Ulisses transformados em porcos por Circe), aquela onde o autor dessa transformação usa tal expediente para manifestar sua “outra face” (seu alter ego) como o Lobisomem nas noites de lua cheia ou aquela onde o autor usa-a como disfarce para aproximar-se de alguém com a finalidade de seduzir e fecundar (como Zeus). No primeiro caso é claramente uma retrogradação; no segundo parece ter função catártica, no último, apesar das aparências, destina-se a atingir um fim mais elevado, transcendente. Daí a modificação do aspecto humanoide em insectoide, plenamente consciente de suas potencialidades, revelar um insólito paradoxo. 129