LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
risadas – quase causou a separação. Os inúmeros quases e porquês e
continuidades e descontinuidades que os anos entrelaçavam e ali se resumiam; o
beijo que, cada vez mais próximo, deveria recuperar aquele cheiro doce de
jabuticaba de um sítio do passado; o beijo, novamente, apenas e sempre, um
beijo.
Minha avó decidiu-se um pouco mais e seu rosto enrubesceu. Quase lábio
com lábio e a intimidade maior do que sexos e corpos por debaixo de lençóis
amassados nas tardes de sábado. Lábio contra lábio, intimidade enfim infinita, e
eu com os olhos marejados pela cena que se manteria para sempre em mim:
dois corpos em comunhão de corpos, saliva transformada em vinho e a
sacralidade do casamento de décadas cristalizada na maciez da pele da boca.
Afinal, se no começo era o verbo, antes era a boca, e, ali, duas consumavam o
ato da narração do amar.
Chorei no meu canto. Olhei e acompanhei a cena com carinho, enquanto os
demais convidados mantinham-se em si mesmos, e sabia que o fim do feito
também se aproximava. Minha avó começou a se afastar. Meu avô manteve-se.
Os beijos, eis o problema, sempre passam, nunca duram enquanto ato. São
mesmo átimos a pairar etéreos, sem eira nem beira, começados, terminados,
existindo apenas.
Minha avó levantou-se ainda rubra e a voz do capelão anunciava a hora.
Três homens que eu nem sequer tinha notado levantaram a tampa do caixão e
sacramentaram a imobilidade do meu avô – permaneceu quieto, miúdo, porém
beijado. Minha avó em um canto, eu, a alguns metros, e o beijo no ar silencioso,
só notado, espero, por nós três. Um beijo, apenas e sempre, é um beijo, e o que
dizer quando chega a partida? Para minha avó, o beijo resumiu, soberano, o tudo
e o todo. No meu caso, eu disse, infelizmente, o comum, o simples, o trivial: eu
te amo, vovô.
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