LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
Apenas e sempre
Clark Mangabeira
Carioca em Cuiabá/MT
Um beijo sempre começa e termina com muito mais do que duas bocas se
encostando. Um beijo é sagrado, demonstra-se entre dois seres pelas línguas e
sobrevive, não como ato, mas como um átimo de realidade eterna que ressoa
além das salivas que se encontram, fechando-se em si, em um casulo de
possibilidades feitas e não feitas. Um beijo é, apenas e sempre, um beijo.
Minha avó aproximou-se do meu avô decidida. Ele, imóvel, quieto, talvez a
observando, parecia esperar o contato. O doce encostar que seria o tudo e o
nada de um milésimo de segundo de eterna lembrança. Quem sabe o que ela
sabia e queria com o beijo a acontecer? Com o futuro do presente do amor
condensado naquele toque por vir? Era o beijo que importava e meu avô, parado,
denunciava sua vontade.
Observava os dois, o momento íntimo, a alguns passos, rodeado pelos
outros convidados que, discretos, mantinham-se entretidos nas suas vidas. Não
reconheciam a magnitude de dois seres de mais idade se beijando, das duas
bocas enrugadas por tantos anos juntos a se encontrarem, das duas mãos que se
tocavam com compaixão e respeito, salpicadas de recordações como a do dia em
que vi minha avó abraçar meu avô embaixo de uma jabuticabeira do sítio que
tínhamos, enquanto ele tentava alcançar as mais altas para ela. Naquele
momento, espiá-los era meu sinônimo de amar. Era o que eu tinha de sólido para
me manter ali, naquela reunião sem gosto, sem forma nem cheiro de real. Eu era
uma exceção entre os muitos que não viam, enquanto todos ali estávamos a
celebrar uma vida.
Meu avô, quieto, continuava a aguardar. Sempre foi assim. Ele sabia sobre
momentos. No gingado de um cavalheiro moldado nos anos antigos, cortejava,
mas, discretamente, adorava ser surpreendido pela esposa. O casamento não
lhes tirou isso, a aurora dos anos clássicos. E minha avó aproveitava o gingado
para se fazer de atitude e demonstrar, como naquele momento, que era dela a
força coquete de provocar e dar o passo final para o beijo: ela se impunha, não
ele, que continuava quieto, quieto, aguardando, quase austero.
Os rostos se aproximando para o beijo e testemunhar o amor nunca é sem
um pouco de saudade. A serenidade de um e a agilidade do outro, a expectativa
do beijo que se denunciava cada vez mais perto, e a paixão que reina no tempo,
que imperou quando houve discussões sobre a venda do Opala 72 e quando a cor
da parede do quarto da filha mais nova – uma história de família recontada entre
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