Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 149

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 mando que cale a boca, mas ela não cala. Estou com a boca seca, o peito mole, doendo. Difícil é engolir a noite, mastigá-la e sentir seu gosto amargo. Ouvir a campainha tocando sem parar. A angústia fazendo do desespero uma faca silenciosa cortando as fatias do medo e saber que serei a próxima vítima de mim mesmo. ***** A ideia persiste, tenho que escrever sobre Leonora. Tantas vezes tenho pensado durante este último ano tão penoso e vazio para mim. Preciso ocupar o espaço físico de Leonora, dando-me um sentido maior. É necessário que se faça um outro ser dentro de mim. O rumor de suas palavras, durante a noite, já não é o suficiente para consolar meu espírito que sofre tantos sobressaltos. Sim, muito eu teria a dizer sobre o modo de ser de Leonora. Embora tenda a acreditar ser muito difícil falar sobre Ela. Sua forma frágil e imperatriz de ser, seus devaneios e sua mansidão, o pacato e o agressivo do olhar. Creio, pois, desnecessário salientar a dificuldade que tenho de formular conceitos, sejam eles quais forem sobre Leonora. Há nas minhas lembranças estranhos hiatos. Fixaram-se, ao mesmo tempo, coisas insignificantes e extraordinárias. Depois vem um esquecimento quase que total. E essas recordações aparecem-me sempre emaranhadas e esmaecidas. Nada se organiza em minha memória. Daí o motivo de nada poder escrever sobre Leonora. Então... Pego seu retrato e olho-o com zelo, e observo que meia metade, um quarto daquilo que houvera sido já está retraçalhado pela traça. Essa descoberta me confunde, me assusta. Foi sob esse profundo horror que repus o retrato onde estava. E percebo que não tenho mínima capacidade de escrever sobre Leonora. É quando um remordimento e a dor tomam conta de minhas entranhas, logo choro convulsivamente a melancólica lembrança Dela. Então imploro aos deuses que devolvam minha Leonora. Mas eles nada me dizem como resposta. Eu sei desta impossibilidade, então volto a cair em um pranto ainda maior e durmo numa inconsolável tristeza. E quando acordo estou mais triste ainda e decido que escreverei de Leonora o que Shakespeare escreveu de Desdêmona; Cervantes divagou sobre a Dulcinéia del Toboso para o seu Quixote e Rosa cantou de Diadorim e Riobaldo. Porque, realmente sou desprovido de talento para escrever sobre Leonora. Mal faço anotações sobre sonhos exóticos, encontros impossíveis como os que tive à meia-noite de um dia qualquer. Em que sobrevoava o Monte Everest, 146