LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
Nostalgia de um Pé Desventurado
Maria Carolina Fernandes Oliveira
Pouso Alegre/MG
Ultimamente não tenho trabalhado. Após uma incessante caminhada pelas
estradas tortuosas da vida, pude finalmente descansar. E cá, repousando sobre
esta almofada rechonchuda e tediosa, alternando minha atenção ora para a
janela, ora para a estampa dissonante da cortina, entrei, involuntariamente, em
uma profunda reflexão sobre o âmago da minha existência.
Essa meditação teve seu início quando vi minha imagem refletida na janela e
percebi que já não possuo o mesmo vigor de anos atrás. Sou revestido por uma
camada áspera e opaca daquilo que um dia já foi brando e livre de calos. Meus
ossos agora competem com o joelho o posto da extremidade mais pontuda sob a
transparência do lençol. Exalo o odor da invalidez e do esquecimento, como um
grande livro jurídico, no fundo da prateleira, pesado e nulo, empoeirado de
limitações.
Meus primeiros passos dei num casebre humilde e sorridente, numa terra seca e
escancaradamente vermelha como o rubro das bromélias nordestinas. Se há uma
imagem da qual não me esqueço, é a estampa da minha primeira pegada,
dedinhos tão miúdos, num formato tão indefeso e franzino. Memorável época em
que saltitava desnudo de um lado para o outro, mais leve que uma mariposa,
porém quase tão desastrado como um novilho recém-nascido.
Veio então o chinelo, a chuteira surrada de meu irmão mais velho, e a gasta
botina parda com a qual pisei na condução que me levaria a capital, e mais que
isso, a uma nova vida. Nunca vi solo como aquele, tamanha era a imundície e a
esperança que lhe cobriam a superfície. Em mim já não havia cicatrizes de cacos
de vidro tampouco de terra vermelha. Passei a conduzir um carro. Relutar
obstante em noites de muito álcool e pouco amor. Marchei apressado em dias de
labuta e transpiração. Caminhei de preto lustrado até o diploma e rumei firme ao
altar. Impaciente, andei de um lado para o outro no hospital à espera de um
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