Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 50

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Eu sabia que depois de cruzar a frente dessa casa poderia encontrar o mar novamente e lembrar de quando ainda era o único morador da rua, sem casas ao redor para me roubarem o horizonte. Aqueles que agora ali chegavam, descarregando suas novas vidas para dentro de casa, teriam para si essa visão privilegiada sem sequer saberem que a esposa do Ramos mantinha um caso com o vizinho da frente, o Alcides, nem que a louca do quarenta e cinco só enlouqueceu de fato depois que a sua suposta amiga, Dona Zena, passou a lhe chantagear, ameaçando contar à família sobre o seu envolvimento amoroso com o neto, o jovem do trinta e seis, e aquela, num ato de insensatez, resolveu exibir num vidro a todos os da rua, como mostrengo de sua vergonha, a genitália morta do neto, mas também eles não saberiam, nem saberão, que tudo isso durará pouco, um tempo menor do que a vinda do dia em que lhes roubarão sem piedade o mar dos olhos, tão rápido e imperceptível que nem chegará a doer depois que a bomba amarrada à roseira de minha casa, programada para daqui a alguns minutos, lançar a rua inteira para os ares, porque é fácil soterrar tudo isso quando acabamos um mundo, ou quando o mundo acaba em nós. 47