LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019
Mais à frente, percebi a casa quarenta e três fechada. Dona Zena devia
estar dormindo. A voz desafinada, vivamente irritante, apagada. Acendi o rosto
com um lampejo de que talvez pudesse estar apagada para sempre. Há algum
tempo não a via pela rua com suas perguntas insistentes sobre a família cada vez
que eu retornava do trabalho. E no que isso poderia interessá-la? Ela já deveria
saber: minha família estava sempre bem. A resposta só podia ser a mesma, sem
floreios.
A vizinha da casa ao lado era a melhor amiga de Dona Zena na rua. O
destino sabe colocar algumas pessoas na mesma calçada. A mulher de
maquiagem rebocada, o corpo encurvado pela altura e pelo dorso pesado, tinha
nome desconhecido na vizinhança já que, à boca miúda, era chamada de a louca
do quarenta e cinco. Saía todas as manhãs com o seu chapéu de palha trançada,
fizesse chuva ou sol, e sua sacola de um transparente desbotado à procura de
uma feira qualquer na cidade. Na volta, ao cruzar com as crianças que brincavam
no meio da rua, a louca mostrava um frasco de vidro escuro a sacolejar entre as
mãos e se deliciava com os gritos dos pequenos enquanto ameaçava abri-lo para
liberar o monstrinho ali aprisionado. A partir daí, descambava um corre-corre
entre a criançada, deleitando a misteriosa mulher que, sorrindo, seguia
apreciando o camuflado frasco.
Estranho mesmo foi perceber que a janela da casa trinta e seis já estava
aberta. O morador, um jovem de poucas palavras, não era quase visto na rua. A
roseira que ocupava sua calçada formava um disforme emaranhado de galhos
mortos. A luz do sol quase não alcançava a úmida fachada, colorida de um verde
musgoso que destoava das demais casas. Pude perceber uma sombra no fundo
da janela entreaberta, decerto o mesmo vulto que Dona Zena afirmava avistar
algumas noites cruzando rapidamente a rua até entrar em casa. Detive-me ali ao
constatar que a sombra parecia disparar mudas pancadas contra a cabeça,
estremunhando em aparentes soluços de raiva como se resfolegasse de um
grande susto. Resolvi aproximar-me da abertura na intenção de desvendar a
cena, mas fui prontamente impedido pelo brusco fechar da janela. Monstro
moral!
O que me levava a pensar que poderia ajudá-lo invadindo sua
privacidade? E não teria ele o direito de cuidar da própria vida? Voltei-me para o
fim da rua, que já estava próximo, e segui caminho.
Foi na saída, ou entrada, já que a rua na verdade terminava em si
mesma, que encontrei a última casa, ou primeira, em mudança. Os novos
moradores descarregavam móveis e pesados caixotes, trazendo nos rostos a
ansiedade anônima do novo lar, sem que ninguém os ajudasse ou importunasse.
Libertos, soltos, estranhamente à vontade naquela rua desconhecida, por vezes
até liberavam gargalhadas como se rissem de todos, como se todos não
pudessem rir.
46