Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 150

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Perscrutei a ampla sala com minuciosa atenção. Clara, muito clara a luz que invadia pela janela aberta. Luminosa luz branca. Olho lá fora, mas nada vejo. É tudo tão branco. Estou cego?... O que vejo, porém, não é a negritude da cegueira; é um branco leite... Não! Isso é pura influência do Saramago, no tratado sobre a cegueira, que acabara de ler recentemente. Apavorado volto o olhar para dentro da casa. Agora vejo o corredor, que bom!... A morte é familiar; a casa de infância, meu pai, minha mãe, o delicioso cheiro do café, os passarinhos cantando no quintal; o Romeu, nosso velho e estimado gato lambendo os beiços do leite bebido; Xuxa, nossa cadela querida, roendo seu osso na entrada do canil; o longo corredor. Lá no fundo uma luz. Imagino que seja a velha cozinha. Sinto o gosto no cheiro do café da mamãe. Vou lá, vou assustar a mamãe. Vou dizer: “Mamãe voltei!... Veja, olhe!... Sou eu, seu filho!...” Emocionado e feliz da vida, segui pelo corredor rumo ao delicioso sabor cheiroso do café passando pelo coador. A decepção foi instantânea. No fim do corredor não havia cozinha, não havia café nem mamãe. Era só um vazio. Quimeras. Atordoado, na volta da cozinha tropecei em algo. Eram livros espalhados pelo chão, caídos ao pé da estante. Agachei-me e peguei o primeiro que me veio à mão. Rá... Rá... Era exatamente meu último livro de contos. Abri e li a dedicatória: “Este é para ti Laura Maria de quem espera a leveza do teu ser...” Era o exemplar que ia dar a minha nova namorada... Que alegria senti... Arrumei os outros na prateleira. Foi então que as coisas voltaram ao normal. Os móveis na ordem, em seus lugares como dantes. Teria sido um pesadelo? Meu pai já não escrevia à máquina. A sala mergulhada numa tênue penumbra, a janela fechara-se. Abri-a, olhei a rua e senti o burburinho. A realidade, a vida de volta. Lógico, nada daquilo tinha o menor sentido, só poderia ter sido um sonho! Afrânio Barbalho, morrer aos trinta e nove anos! Não, isto não tinha cabimento mesmo. Isso era totalmente fora de propósito. Tanta vida para viver, tantas ilusões, tantas visagens a serem decifradas. Seria melhor assim. Continuar vivo mesmo devendo o cartão de crédito, a pensão, enfrentar as críticas sobre o livro. Fui ao banheiro. Lavei o rosto. Escovei os dentes. Voltei ao quarto para trocar de roupa. Precisava sair, pois ainda continuava assustado, era preciso dar uma desanuviada no espírito. Tudo fora um pesadelo, e me deixara extenuado. Ao entrar no quarto, o inopinado; deparei-me com o mesmo caixão onde estivera deitado antes, quando pensava estar morto. O soalho, alastrado de flores pisoteadas, estrias de cera escorria dos castiçais. Com cautela me aproximei do esquife, e estupefato constatei que era nada mais, nada menos, do que eu mesmo. 147