Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 151

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Sim! Era eu, o próprio, que continuava morto. Mortinho dentro do ataúde. Espichado. Toquei o dedo em uma das mãos. Dura como pão esquecido na farinha. Tantas flores; jasmim, cravos despetalados, espalhados pelo chão. O quarto exalava um odor cada vez mais repugnante. Teria havido ali uma turbamulta? Aterrorizado voltei para a sala. Outra vez tudo ficara vazio. Sem móveis, sem nada. Um mundo oco. Corri para a garagem em desespero. Liguei o contato do carro, quis sair imediatamente dali. Enquanto esquentava o motor liguei o rádio. No primeiro dial, a notícia: “Morreu hoje em decorrência de falência dos órgãos devido uma crônica cirrose hepática, o escritor, contista e poeta, Afrânio Barbalho. Tido pelos críticos como maldito e eminência parda, por ele mesmo intitulado...” Alguém dedicou ao meu desaparecimento precoce à música, Hallelujah. Eu ouvia o rádio com os olhos vítreos, esbugalhados; deitei a cabeça no encosto do banco. Em devaneio quase adormeci. Voltei-me, olhei no espelho do quebra-luz e, pasmem!... Meu reflexo sumira! Empalideci, tremi. Estava amarelado como um pedaço de jornal velho. Ao término da música, entre confuso e atônito ouvi a conclusão da notícia: “A família ainda não definiu o local do velório nem o cemitério onde se dará o sepultamento. Entretanto, os amigos e acadêmicos estão organizando um sarau para hoje às 17h00, no Boteco da Graça, onde serão lidos em homenagem, seus últimos escritos em forma de poesias, contos e crônicas.” Meu ar de estupefação ia do assombro ao medonho. A realidade da morte começou a entrar-me pelas entranhas e pelos sentidos. Outra vez encostei a cabeça no banco e me pus a pensar. E subitamente, senti uma geleira percorrer meu espinhaço. Algo acorreu clareando. O que me acudiu tirando-me da obscuridade e do mistério. Um presságio esquentou o suor que brotava frio dos meus poros. Num sobressalto a clarividência: claro, o enigma estava resolvido. Alvíssaras! Tudo não passava de uma brincadeira extravagante daqueles perdulários amigos meus, que gostavam de pregar peças como estas. Era o lançamento do meu livro de contos. Os amigos queriam fazer uma troça comigo. Um auê!... Daí o anúncio pago no rádio, claro. Era só para chamar a atenção da imprensa. Estava evidente! Era isso. E desta vez eles estavam ajudando. Que bacana! Eu tinha mais era que agradecer. É, agradecer!... Mas eu vou agradecer do meu modo. Vou dar o troco com a mesma moeda, ou melhor, eles me deram em prata, vou devolver em ouro. Contratarei um grupo de atores, outro tanto de figurantes. Farei uma cópia de mim mesmo em cera, do meu tamanho, da minha largura. Deixe estar! Na hora do sarau mandarei o préstito em meu funéreo cortejo para o Boteco da Graça com todas as pompas e circunstâncias que um defunto do meu quilate merece! Com a instrução de lá se fazer o velório, pois foi o desejo expresso pelo 148