LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019
rodinhas, mas eu me assustei naquela vez em que você caiu e abriu aquele rasgo
enorme no seu joelho. Fiquei ao seu lado o tempo todo enquanto sua mãe fazia
um curativo em seu joelho. Ah, se eu pudesse transmitir a você a certeza que eu
tinha de que as feridas cicatrizam e que logo a dor passa! Eu não queria te ver
chorar, doía em mim.
Mas você era forte naquela época. Ainda é hoje, eu bem sei, mas, naquela
época, eu tinha tanto orgulho dessa força! Seus amiguinhos de escola iam
brincar em casa, e você era sempre a líder. Saíamos juntos você e eu, e era você
quem sempre conduzia nossas excursões. Você era até capaz de fazer seu pai lhe
conceder aquilo que você queria sem ter que fazer birras. É, você pensa que não,
mas eu sempre consegui perceber o modo com que você manipulava as atenções
e as simpatias de todos ao seu redor. Eu sempre pensei que você seria uma
grande chefe. Uma daquelas mulheres que usam salto alto o tempo todo, e têm
seu próprio carro novo, e compram comida pronta. E, em minha doce ilusão, eu
sempre imaginei que estaria ao seu lado por toda sua vida.
Afinal, nós somos família…
Hoje é um dia bom. Vai chover, está frio, mas o padeiro está de bom
humor e resolveu me dar um pedaço de pão recheado com calabresa ralada, meu
favorito. Sobrou de hoje de manhã, e ninguém mais vai comprar, mas nem
sempre ele me dá essas sobras, porque, às vezes, ele as leva para os cães que
tem em casa. Hoje ele as deu para mim. É bom estar de estômago cheio… Mas
nada se compara com os jantares caseiros.
Você sempre contava histórias do seu dia para mim antes do jantar. Essa
era sua natureza, a de cuidar dos outros. Sua mãe, aquela delicada criatura, me
servia todas as noites, já que eu sempre tive minhas limitações, não é mesmo? E
eu comia a refeição quentinha e dormia agradecido por fazer parte de uma
família tão maravilhosa. Às vezes, você ainda surgia em meu quarto só para se
certificar de que eu estava devidamente coberto e aquecido.
Seus cuidados fazem falta… Assim como sua mãe…
Quando ela faleceu, eu estive ao seu lado, e você se agarrou a mim e
choramos juntos uma tarde inteira, até você conseguir dormir. Eu sofri com você.
Você provavelmente nem sabe, mas, em silêncio, estive também ao lado do seu
pai, e afagava a mão dele nas tardes solitárias, enquanto você estava na escola e
ele procurava alívio no fundo dos copos de uísque. Tenho tanta tristeza por não
ter conseguido retomar a atenção dele para você!
Não foi uma adolescência fácil, essa que você teve. Você teve que tomar a
frente da casa sozinha, e cuidar do seu pai, que tinha se tornado tão alheio a
tudo, além de mim… Foi muito bom que sua tia tivesse aparecido para ajuda-la,
mesmo ela não gostando de mim. Mesmo ela tendo colocado ideias em sua
cabeça, que levaram a nossa separação.
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