LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018
Este Conto Daria Uma Peça
Ricardo Ryo Goto
São Paulo/SP
Tem uma chuva caindo aí fora, não é, Dr.? Sei, gosto do barulho. Mas só do
barulho. Peguei muita chuva quando pequeno. Umas vezes por farra, outras por
falta de abrigo. Sei que a chuva é boa prá lavoura, prá roça. Mas aqui, na cidade,
essas enchentes...
Claro, o sr. nem sabe o que é isso. Deve ter visto apenas nos jornais e na
televisão. Mas eu, criado na favela, nos barracos precários do morro, metido em
lama pelas pernas...
Que é isso, Dr. Não tô me gabando de nada, não. Não sou melhor que os
outros só porque conheço o lado podre da vida. E além do mais, nem conheço
tudo, só uma pontinha.
Por exemplo: nunca conheci meus pais verdadeiros. Tá bom, tem milhares
de gente que idem e não se meteram a fazer o que eu fiz. O que foi que fiz ?
Disse pro meu velho – o padrasto - que me batia por qualquer motivo, que
tava cansado daquilo, que ele não tinha o direito, que, se fosse prá continuar,
não deveria ter me adotado, pois eu não tinha pedido prá nascer, nem prá ele
nem pro meu pai verdadeiro. E ele?
Falou que era um favor me dar aquelas porradas, porque eu não tinha um
pai legítimo prá me educar, e, se não quisesse mais ficar nessa brincadeira,
poderia me apagar num canto escuro qualquer e ir acertar contas com o Criador.
Chocado? Imagine eu, naquela idade, saber que não tinha pai, e o postiço,
um poço de ruindade e cinismo.
Mas valeu. Não é que eu fui mesmo para um canto escuro, chorar a
desgraça e tentar me vingar de Deus ?
Que tolice. Ganhei uns cortes no pulso, uns pontos no pronto-socorro e
uma sova que me deixou inchado por 2 ou 3 dias.
74