LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018
Qanta maldade!
Aparecida Gianello dos Santos
Martinópolis-SP
Todos os dias ele passava horas observando aquele réptil em sua instintiva rotina
de apanhar insetos em cima do muro. E de tão acostumado com a presença do
velho a espiá-lo, vez ou outra o bichinho até descia vindo para bem perto deste.
Uma amizade para ninguém botar defeito, homem e natureza em perfeita
sintonia. Cumplicidade total. Amor à primeira vista, com brilho nos olhos e tudo
mais.
O calanguinho, dono de poucos atrativos, bicho sem graça, temido pelas meninas
e – quantas vezes! – apedrejado pelos moleques do bairro, conseguira, afinal de
contas, despertar os cuidados de um humano. Agora não mais sob gritos de
pavor ou asco, desta vez não. Bichinho de sorte aquele, pois quantos perigos não
se escondem por trás de muros e arbustos e gentes...
Assim, o velho matava o seu tempo, e suas manhãs corriam bem mais animadas,
pinceladas pela atividade do seu mais novo coleguinha: o calanguinho, o ilustre
morador do muro vizinho. Os encontros daqueles dois, de tão corriqueiros,
pareciam mesmo combinados. Era um na varanda, em sua velha espreguiçadeira,
e o outro no muro, espichado ao quentinho dos primeiros raios de sol. “Isso, sim,
é que é amor”, dizia consigo o velho, “não aquilo que tinha por Tereza.”. Tereza: a
ingrata que o abandonara. Pobre Tereza! Não suportara a ideia de ter sido
trocada. “Velho doido! Vai ver só...”. E agora ele estava ali, à mercê dos encantos
de um reptante. Acaso supunha ele o quanto era admirado pelo ex-homem de
Tereza? Não. Não mesmo. Definitivamente não. Tampouco sabia do perigo que
corria. Diferente do velho, nas suas mais sublimes intenções, outro ser o
observava. E já havia algum tempo.
Foi de repente, em um ataque surpresa. Brutal surpresa. Culpa do velho, que não
tinha olhos para outra coisa que não o fossem senão para o seu pupilinho?
Impossível saber. Impossível prever. Impossível como evitar aquele triste dia.
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