Revista LiteraLivre 12ª edição | Page 147

LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018 Qanta maldade! Aparecida Gianello dos Santos Martinópolis-SP Todos os dias ele passava horas observando aquele réptil em sua instintiva rotina de apanhar insetos em cima do muro. E de tão acostumado com a presença do velho a espiá-lo, vez ou outra o bichinho até descia vindo para bem perto deste. Uma amizade para ninguém botar defeito, homem e natureza em perfeita sintonia. Cumplicidade total. Amor à primeira vista, com brilho nos olhos e tudo mais. O calanguinho, dono de poucos atrativos, bicho sem graça, temido pelas meninas e – quantas vezes! – apedrejado pelos moleques do bairro, conseguira, afinal de contas, despertar os cuidados de um humano. Agora não mais sob gritos de pavor ou asco, desta vez não. Bichinho de sorte aquele, pois quantos perigos não se escondem por trás de muros e arbustos e gentes... Assim, o velho matava o seu tempo, e suas manhãs corriam bem mais animadas, pinceladas pela atividade do seu mais novo coleguinha: o calanguinho, o ilustre morador do muro vizinho. Os encontros daqueles dois, de tão corriqueiros, pareciam mesmo combinados. Era um na varanda, em sua velha espreguiçadeira, e o outro no muro, espichado ao quentinho dos primeiros raios de sol. “Isso, sim, é que é amor”, dizia consigo o velho, “não aquilo que tinha por Tereza.”. Tereza: a ingrata que o abandonara. Pobre Tereza! Não suportara a ideia de ter sido trocada. “Velho doido! Vai ver só...”. E agora ele estava ali, à mercê dos encantos de um reptante. Acaso supunha ele o quanto era admirado pelo ex-homem de Tereza? Não. Não mesmo. Definitivamente não. Tampouco sabia do perigo que corria. Diferente do velho, nas suas mais sublimes intenções, outro ser o observava. E já havia algum tempo. Foi de repente, em um ataque surpresa. Brutal surpresa. Culpa do velho, que não tinha olhos para outra coisa que não o fossem senão para o seu pupilinho? Impossível saber. Impossível prever. Impossível como evitar aquele triste dia. 141