Revista LiteraLivre 12ª edição | Page 145

LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018 dando conta de que o ser humano não é somente mais fraco do que a natureza, como parece ter entendido em um certo texto de Freud, “O mal-estar da civilização”, que em algumas traduções vem como “o mal-estar da cultura”, mas, isto o pior, também mais fraco do que ele próprio. Então foi que olhou para cima, buscando ajuda que todos buscam, e percebeu o quão nublado estava o céu, o que indicava que não daria para fazer o que tinha programado com ela; sempre a alteridade. Mas atravessar tinha que continuar, pois estava em rito de passagem. A vida é só uma passagem, do outro lado poderiam acontecer coisas fora de sua previsão e vontade, como a chuva que logo não tardaria. Um esbarrão; não foi nada. Ainda sorriu gentilmente, malgrado o cara fosse mais fraco do que ele, e não lhe tivesse retribuído o sorriso, pelo contrário. Mas tinha que passar; a vida é não mais do que uma passagem. Parece óbvio, mas passar indica sobreviver, porquanto os carros parecem feras, mesmo que dentro deles estejam pessoas aparentemente frágeis. O ser humano está sempre tornando-se, passando, transformando-se. Se ele estivesse dentro de um daqueles carros, certamente (não provavelmente) ele seria o outro. O carro faria a passagem dele para outro. Imaginou-se atravessando o deserto em direção à Terra Prometida, liderado por Moisés: seria um outro, outro montado em uma passagem que, ao invés de segundos, levaria anos. Pensar em morrer nessa passagem seria algo tão corriqueiro que pediria a pessoas de sua confiança que não enterrassem o seu corpo sem antes encomendar-lhe a alma. Mas na travessia de uma passagem com listras de pedestres devidamente pintadas pelo poder público, e por este e por todos legitimada, alguém ter a desconfiança de que poderá morrer pelo simples atravessar é de bom alvitre que volte ao seu analista e que ele lhe recomende uma forte ilusão psicanalítica, bem mais do que um copo d’água. 139