LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018
dando conta de que o ser humano não é somente mais fraco do que a natureza,
como parece ter entendido em um certo texto de Freud, “O mal-estar da
civilização”, que em algumas traduções vem como “o mal-estar da cultura”, mas,
isto o pior, também mais fraco do que ele próprio. Então foi que olhou para cima,
buscando ajuda que todos buscam, e percebeu o quão nublado estava o céu, o
que indicava que não daria para fazer o que tinha programado com ela; sempre a
alteridade. Mas atravessar tinha que continuar, pois estava em rito de passagem.
A vida é só uma passagem, do outro lado poderiam acontecer coisas fora de sua
previsão e vontade, como a chuva que logo não tardaria. Um esbarrão; não foi
nada. Ainda sorriu gentilmente, malgrado o cara fosse mais fraco do que ele, e
não lhe tivesse retribuído o sorriso, pelo contrário. Mas tinha que passar; a vida é
não mais do que uma passagem. Parece óbvio, mas passar indica sobreviver,
porquanto os carros parecem feras, mesmo que dentro deles estejam pessoas
aparentemente frágeis. O ser humano está sempre tornando-se, passando,
transformando-se. Se ele estivesse dentro de um daqueles carros, certamente
(não provavelmente) ele seria o outro. O carro faria a passagem dele para outro.
Imaginou-se atravessando o deserto em direção à Terra Prometida, liderado por
Moisés: seria um outro, outro montado em uma passagem que, ao invés de
segundos, levaria anos. Pensar em morrer nessa passagem seria algo tão
corriqueiro que pediria a pessoas de sua confiança que não enterrassem o seu
corpo sem antes encomendar-lhe a alma. Mas na travessia de uma passagem
com listras de pedestres devidamente pintadas pelo poder público, e por este e
por todos legitimada, alguém ter a desconfiança de que poderá morrer pelo
simples atravessar é de bom alvitre que volte ao seu analista e que ele lhe
recomende uma forte ilusão psicanalítica, bem mais do que um copo d’água.
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