Revista LiteraLivre 11ª Edição | Page 169

LiteraLivre Vl. 2 - nº 11 – Set/Out. de 2018 - Tá, mas o que tem essa floresta? - Você tá com pressa?Porque daqui onde eu tô agora, o tempo não me preocupa mais, não tenho mais essa agonia. Continue escrevendo o que eu tô falando e não atrapalhe. Então, como eu tava falando, tava passando naquele pedaço do matão fechado, bem devagar, a estrada é muito ruim ali, estreita, cheia de pedra e buraco, já era de noite, eu tava com o farol aceso, mas ali, naquele lugar, até de dia tinha que acender o farol. É sempre escuro. Bom, quando eu tava bem na metade da floresta, parece que vi alguma coisa se mexendo no mato, na beira da estrada, coloquei no farol alto e fui olhando, tinha um negócio se mexendo mesmo, mas o mato tava na frente, então não dava pra ver direito. Daí, não é que, quando cheguei mais perto, vi que tinha um homem sentado ali, na beira da estrada, bem tranquilo?Levei um susto com aquilo, no meio daquele mato, deserto, naquela hora da noite, só podia ser tocaia, mas o cara continuou sentado, tranquilo, nem virou pra olhar quando o farol pegou no rosto dele. Eu tava com pressa, porque ainda tinha que arranjar a cebola pro cliente, mas, como dizem que a curiosidade matou o gato, parei o carro mesmo assim, e fui ter com o sujeito. Peguei o revólver debaixo do banco e coloquei na cintura, apaguei o farol e desliguei o carro. “Boa noite, o senhor anda perdido por essas bandas?” disse eu, descontraído, tentando puxar conversa “Perdição?Perdição não é comigo”, respondeu o sujeito, meio irônico. Vi que ele tava calmamente enrolando fumo na palha de milho, continuei parado, sem saber o que dizer, situação esquisita aquela, o sujeito começou a falar “na verdade eu tava aqui esperando o senhor. Preciso falar com o senhor”. Fiquei encafufado, aquilo não fazia sentido nenhum, nunca tinha visto aquele sujeito na minha vida, como ele ia saber que eu ia passar por ali, naquele lugar deserto, naquela hora?Aliás, o que ele tava fazendo ali?Por todas aquelas bandas, era só plantação do João, tudo propriedade particular, e naquele dia nem teve serviço, o trator tava quebrado. A única construção naquela área toda era o barracão do João, e ninguém morava lá. Já fiquei preparado pra, qualquer coisa, puxar o revólver, ele continuou “O senhor é o fulano de tal”, ele disse o meu nome completo, “o senhor nasceu numa noite fria, muito fria. A noite mais fria do ano. Do lado de fora, seus parentes se aqueciam numa fogueira com o que sobrou da fogueira de São João, enquanto o senhor nascia. Era lua cheia. O senhor nasceu em cima de uma mesa de madeira, que tinha um corte do lado, um corte de facão, coisa de uma briga do seu avô, briga que teve sangue, muito sangue, manchou toda a mesa. O senhor nasceu ali, bem na mancha de sangue”. Ali eu tremi, como ele sabia de tudo essas coisas?Ele aparentava ser bem mais moço do que eu. Até pensei em puxar o revólver e dar um tiro nesse coisa ruim, mas ele olhou pra mim, um olhar penetrante, e eu não conseguia me mexer, tinha que ouvir tudo que ele tinha que falar. “O senhor cresceu”, disse ele, pitando na palha de milho, 163