Revista ideaas Edição DOIS | Page 18

Revista ideaas | DOIS | J á na faculdade, nos anos 90, Otávio Clark começou a se interessar por Epidemiologia, que na época es tava sendo “repaginada” e recebeu o nome de Medicina Baseada em Evidências. Depois de concluir o curso de Medicina na Faculdade Federal de Uberlândia (MG), em 1994, ele foi fazer residência em Oncologia na Unicamp (SP) e reiterou seu gosto pela Epidemio- logia, Oncologia e por mergulhar em dados. Nascia ali o embrião do que seria seu grande projeto de vida: sua empresa, Evidências, especializada em desenvolver projetos que necessitavam de uma metodologia cien- tífica muito rigorosa e em fazer treinamentos nessa área. Além de muito sangue, suor e lágrimas, ela trouxe grande reconhecimento e projeção internacional para Clark. A seguir, ele conta como foi essa jornada até se tornar um empreendedor na área da saúde. Por que escolheu essa área de trabalho? Sou médico oncologista, mas minha paixão dentro da Medicina sempre foram os segmentos da Epidemiolo- gia Clínica e da Metodologia Científica*, que pouca gente gosta, porque requer uma enorme disciplina de pensamento e estrutura de raciocínio. Nesse campo, *Epidemiologia clínica: junção dos trabalhamos com muitos conceitos quantitativos da epidemiologia números, estatísticas e ló- de populações (estatística, medidas de associação, causalidade) com os modelos gica para definir que méto- de decisão médica individual aplicados no do dever ser usado em de- cuidado de pacientes. terminado estudo. Adoro tudo isso. Como colocou sua paixão em prática? Fundei a empresa Evidências, em 1998, justamente para trabalhar na área Medicina Baseada em Evidências e desenvolvimento de protoco- los. Tais temas eram extremamente novos na época. Mesmo fora do Brasil, havia bastante debate, muitas dúvidas se a Medicina Baseada em Evidências era um caminho viável de trabalho ou não, muito em função da desconfiança que uma novidade costuma causar. O que, afinal, é Medicina Baseada em Evidências? É aquela em que se consegue separar os estudos que têm mais validade do ponto de vista metodológico, quantifica os resultados e aplica esse processo na prática médica. Ou seja, é ter metodologia explícita para escolher os melhores tratamentos para o paciente. E como se especializou nesse setor? Trabalhando na prática – lendo, pesquisando, debatendo e implemen- tando os aprendizados. Nessa época (1998-1999), a Medicina baseada em Evidências começou a despertar o interesse de mais profissionais e passou a tomar corpo. Por isso, eu e um amigo decidimos montar um site, onde publicávamos informações, notícias e estudos, inclusive produções próprias, sobre o assunto. Foi só uma iniciativa para ter onde colocar conteúdo. Nunca pensamos que isso viraria uma empresa. Era um site simples, mas a carência de conteúdo era tamanha que, em cinco anos, tivemos mais de 500 mil usuários únicos – um fenômeno para a época, considerando que era algo bem específico. Como a Evidências ganhou relevância? Começou com o sucesso do site. Deixamos o conteúdo aberto e con- quistamos exposição. Passamos a ser procurados por várias universida- des para dar treinamento sobre o tema. Em paralelo, também passa- mos a publicar nossos estudos e pesquisas em revistas especializadas, inclusive no exterior, o que é difícil para grupos brasileiros. Nosso tra- balho chamou a atenção e fui convidado para fazer parte de um time no hospital H. Lee Moffitt Cancer Center, na Flórida (Estados Unidos), que estava produzindo algo similar lá: eles faziam as avaliações de tecnologia e saúde para Oncologia para um plano de saúde. O objeti- vo era investigar evidências se determinadas drogas funcionavam e a relação custo/efetividade para os pacientes. Quando voltei ao Brasil, os planos de saúde e a indústria farmacêutica daqui me chamaram para implementar essa mesma técnica e a Evidências decolou. Saímos de uma empresa de dois funcionários para 40, atendendo a 20 clientes ao mesmo tempo. A carência de conteúdo era tamanha que, em cinco anos, tivemos mais de 500 mil usuários únicos – um fenômeno para a época, considerando que era algo bem específico. A que atribui o sucesso do seu trabalho? Era uma curiosidade geral: todo mundo nos perguntava como conse- guíamos trabalhar com duas pontas antagonistas: os planos de saúde, que são quem compra [medicamentos], e a indústria farmacêutica, que é quem vende. Naquela época, esse modelo de negócio, até onde sabíamos, era exclusivo da Evidências. O segredo para as coisas terem dado certo é que nos dispusemos a trabalhar com a verda- de, independentemente de quem estivesse perguntando. Se um medicamento não era bom, dizíamos. Se era bom e caro, mas eficiente a ponto de valer a pena, idem – fosse para o laboratório ou para o plano de saúde. Isso construiu nossa credibilidade. E qual foi o turning point da Evidências? Quando fizemos um estudo extremamente elaborado sobre a quimio- terapia oral. Esse tipo de medicamento foi revolucionário e, quando começaram a surgir, os planos de saúde não tinham a obrigatoriedade de custeá-lo. Era complicado dizer ao paciente que, em vez de tomar um medicamento em casa, de última geração, ele teria de se deslocar para uma clínica e passar algumas horas lá para tomar a químio endo- venosa. Levantamos quanto custaria aos planos de saúde pagar pelo tratamento oral, avaliamos custo-benefício, e publicamos o trabalho. Ele ganhou repercussão e até a então senadora Ana Amélia Lemos, que na época estava defendendo essa ideia, usou o nosso trabalho no projeto dela, que acabou sendo sancionado e virou lei, em 2013. Esse movimento fez bastante barulho e, em 2012, fomos procurados pela multinacional Kantar, que buscava um parceiro para atuar no braço dedicado à saúde, a Kantar Health. Fizemos uma transição de 2012 até 2014, quando eles finalmente compraram a Evidências. Continuei à frente do negócio no Brasil até dezembro do ano passado. Conte um pouco sobre o seu trabalho atual. Desde o início deste ano, sou vice-presidente de Oncologia da Kantar Health Division. Moro seis meses no Brasil e seis meses em Nova York (EUA). No meu dia a dia, participo de treinamentos e de desenhos de projetos grandes e complexos para a indústria farmacêutica e planos de saúde, um pouco para universidades e governo. Estou bem satis- feito, porque trabalho com o que gosto e, sobretudo, tenho a chance de conhecer pessoas, interagir e aprender com elas. Eu gosto de gente e de me ver cercado de diversidade. Me faz sentir vivo. Quais foram as maiores dificuldades de empreender em ciência, no Brasil, até a aproximação com a Kantar? Precisamos nos cercar de profissionais que tinham competências nas áreas administrativa e financeira, que não eram a nossa praia. Co- meçamos atendendo empresas que faturavam R$ 5 mil/mês e terminamos com empresas que faturavam US$ 5 milhões/mês! Foi um processo de aprendizado dolorido. Mas, sem dúvida, o maior obstáculo foi enfrentar a insanidade tributária, fiscal e trabalhista do Brasil. Se eu abriria outra empresa aqui? Nunca! Tenho um negócio nos Estados Unidos e tudo lá é de uma simplicidade chocante. Além dos entraves burocráticos, o senhor acha que empreender na área da saúde/ciência no País tem peculiaridades que torna a missão mais difícil? Sim, tem. A área da saúde é extremamente regulamentada (e precisa ser), para proteger a confidencialidade das informações médicas do indivíduo e as relações entre os diversos stakeholders da área – médi- cos, hospitais, fontes pagadoras, indústria de insumos. Se não fosse assim, essas relações poderiam se tornar contaminadas pelos interesses pessoais. A Medicina ainda é uma área com enorme autoritarismo, onde a decisão médica individual é bem difícil de ser contestada ou questionada. Porém, cada vez mais, as pessoas estão entendendo que é preciso migrar para modelos de decisão mais compartilhados para que o sistema possa progredir. Na parte científica, a principal dificuldade é que todo o processo de pesquisa necessita ser documentado e mapeado, a fim de permitir que seja reproduzido. Essa tarefa é extremamente cansativa e tedio- sa, mas é o cerne para assegurar que o progresso científico possa ser assegurado e repetido por outras pessoas. O senhor acha que a Evidências é a prova de que é possível empreender em saúde e ciência no Brasil? Por quê? Sem dúvida (e me desculpe a falta de modéstia). A Evidências come- çou como uma empresa “de garagem”, com duas pessoas, um power point e um website. Tornou-se uma referência de mercado no País e obteve reconhecimento internacional num grau que poucas empresas brasileiras dessa área conseguiram. Cito isso baseado em fatos: • Conquistamos clientes internacionais que têm o mais alto grau de exigência para seus projetos – indústria farmacêutica e de equipa- mentos médicos da Europa e Estados Unidos (elas foram respon- sáveis por mais de 50% do nosso faturamento nos últimos anos); • A empresa é um celeiro de talentos, desejados por todos os stakehol- ders do mercado: temos ex-funcionários em posições importantes na indústria farmacêutica, hospitais, universidades e planos de saúde. Ter trabalhado na Kantar-Evidências é um selo de qualidade para esses empregadores; • Nossas publicações são citadas em inúmeros guidelines de trata- mento médico internacionais no mundo inteiro. Como foi lidar com tantas adversidades e, tempos depois, ter o reconhecimento internacional? Com certeza, fez tudo valer a pena. Para se ter uma ideia, tivemos cerca de 300 trabalhos publicados em revistas científicas, des- ses, 80 em títulos internacionais de primeira linha, como The Lancet, The British Medical Journal e Journal of Clinical Onco- logy, entre outros. Boa parte das nossas publicações foram (e são) usadas por grupos médicos renomados no exterior, como a Sociedade Americana de Oncologia Clínica e a Sociedade Europeia de Oncologia Clínica, para criar protocolos de tratamentos. Pouquíssimos brasileiros têm citação nesses guidelines e isso me enche de orgulho. 18