Revista de Medicina Desportiva Março Março | Page 28

Reportagem

Rev . Medicina Desportiva informa , 2022 ; 13 ( 2 ): 26-27 . https :// doi . org / 10.23911 / Travessia _ nado _ 2022 _ mar

Travessia a Nado da Ilha de São Jorge à Ilha Terceira

Introdução
Diariamente a vida desafia as componentes física , psíquica , emocional e social do ser humano com o propósito de alcançar objetivos pessoais , contribuindo para que a Humanidade alcance novas conquistas e horizontes . O desporto reflete todas estas áreas e coloca o Homem a testar os seus limites continuamente , permitindo ao atleta superar uma meta pessoal ou mesmo mundial . A comunidade desportiva é impelida a evoluir constantemente através de estudos e relatos de desafios que materializam resultados antes inalcançáveis , espelhando a força do desporto na vida .
Esta exposição propõe relatar o acompanhamento médico de uma prova inédita idealizada por dois nadadores não profissionais : a travessia de 40,350 km , a nado , da Ilha de São Jorge à Ilha Terceira , em águas abertas no Oceano Atlântico , colocando à prova a condição humana e , simultaneamente , enaltecendo o desporto .
A preparação
Dr . Fábio Miguel Santos da Luz Médico de Medicina Geral e Familiar ( assistente complementar ) – Unidade de Saúde da Ilha Terceira ; Pós-Graduação em Medicina Desportiva pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Cerca de 13 meses antes os nadadores iniciaram a preparação física , que essencialmente consistiu em realizar a nado a distância estimada de 40km , parcelados em treinos semanais . A metodologia do treino semanal comportava essencialmente natação 5 a 6 vezes , com duração de 90 a 120 minutos , com 6km de percurso . Algumas vezes incluiu , também , a execução de corrida e de trabalho de ginásio , uma a duas vezes por semana , cerca de 60 a 90 minutos . O trabalho muscular concêntrico , inerente ao gesto da modalidade , foi privilegiado , sem descorar a realização de exercícios excêntricos e isométricos . O aumento da endurance apresenta-se
como principal foco a fim de otimizar a fisiologia do esforço cardiorrespiratório e musculosquelético . No final dos treinos , a realização de alongamentos , assim como a reposição hídrica e energética , foram cumpridos com a máxima disciplina . Os períodos de recuperação nem sempre eram os desejados pelas responsabilidades laborais e familiares dos indivíduos .
Avaliação dos nadadores
Os nadadores , J . C . de 50 anos de idade , maquinista de Central Térmica , de 1,85m de altura e com 100kg de peso , e F . C . de 48 anos , motorista , de 1,76m e com 75kg praticam desporto desde a juventude até à data : futebol , ténis de mesa e corrida livre . Iniciaram natação em águas abertas , J . C . em 2016 e F . C . desde maio de 2020 . J . C . experimentou esta travessia em 2017 , sem o sucesso da chegada .
Sem antecedentes clínicos de relevância ( apenas um nadador referiu omalgia ligeira em tratamento de fisioterapia ), ou medicações crónicas e alergias conhecidas , realizaram o exame médico-desportivo três meses antes da prova . A anamnese e o exame físico decorreram sem aspetos relevantes . Realizaram provas analíticas , radiografia do tórax e eletrocardiograma ( ECG ). Todos os exames complementares sugeriram normalidade , à exceção do ECG de F . C . que revelou um traçado eletrocardiográfico compatível com hipertrofia ventricular esquerda , que não se veio a confirmar por ecocardiograma .
Este pedido complementar de exames foi motivado pela exigência que a prova impunha , devendo o médico direcionar o seu exame médico desportivo às necessidades que a modalidade requer . Numa prova com a exigência fisiológica desta dimensão , descartar alguma alteração a nível do hemograma , do perfil hepático ou tiroideu é essencial de modo a prevenir complicações no percurso da prova e durante o período de recuperação .
Mala médica e potenciais quadros clínicos
O papel do médico numa prova com estes contornos é sempre uma incerteza , pelo foi adotado o princípio indicado no ditado popular : quem vai ao mar , avia-se em terra .
A preparação do conteúdo da mala médica , com sistema de soros simples , analgésicos , anti-inflamatórios , anti-histamínicos , adrenalina injetável , pensos , desinfetantes , cobertores térmicos e bala de oxigénio , é de extrema importância para as eventuais ocorrências clínicas .
Os quadros clínicos mais perspetiváveis no decorrer da prova são : indisposição geral no adulto , exaustão , desidratação , hipotermia , hipotensão , queimadura química ( as mais comuns nos mares açorianos são provocadas pela caravela-portuguesa e a alforreca , esta última comumente denominada de água-viva ), choque anafilático , alterações hidroeletrolíticas e ácido- -base , ruturas musculares , mialgias , tendinites , bursites , queimadura térmica pelo sol , entre outras . A situação mais emergente neste tipo de cenário é o afogamento . A estas eventualidades soma-se a instabilidade das condições atmosféricas e das correntes marítimas , criando a necessidade de integrar um nadador- -salvador e dois bombeiros , um deles mergulhador de profundidade , que se juntam a uma equipa com um médico , um enfermeiro e um marinheiro .
A prova
A prova iniciou-se às 6h40m do dia 17 / 07 / 2021 na freguesia do Topo , no Município da Calheta , Ilha de São Jorge , e terminou na freguesia das Cinco Ribeiras , Município de Angra do Heroísmo , Ilha Terceira . Relativamente às condições atmosféricas , na primeira 1h30min houve vento moderado a fresco de noroeste entre os 11 e os 21 nós , com vaga norte de 1 a 1,5 metros . Nas 11h30m seguintes o vento baixou para fraco , de 4 a 5 nós , mantendo a mesma direção , com uma ondulação de norte com 0,5 metros de altura . Na restante 1h30min , o vento voltou a subir para moderado a fresco entre
26 março 2022 www . revdesportiva . pt