Revista de Medicina Desportiva Informa Novembro 2016 | Page 6

Exame de sobreclassificação – qual a finalidade ?

Dr . Diogo Santos 1 , Dr . José Ramos 2 , Prof Doutor Ovídio Costa 3
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Interno de especialidade de Medicina Desportiva , Centro de Medicina Desportiva do Porto ; 2 Especialista em Medicina Desportiva , E-tutor do Curso de Especialização em Medicina Desportiva , 3 Cardiologista , Diretor do Curso de Especialização em Medicina Desportiva . 2 , 3 Faculdade de Medicina da Universidade do Porto .
Várias têm sido os comentários e os artigos publicados nesta Revista a constatar a falta de rigor científico e o despropósito médico-desportivo da obrigatoriedade deste exame . A propósito da regulamentação deste exame ( Diário da República , 1 .ª série – N .º 231 – 29 de novembro de 2012 ) escrevia um dos autores deste artigo : “ Quando se esperava uma solução acertada , consensual , baseada em evidências científicas ou recomendações internacionais , eis que nos deparamos com um documento que regulamenta o absurdo : o exame médico de sobreclassificação passa agora a ter um protocolo clinico …” (…).
Apesar de todos estes argumentos , o Decreto Lei n º 255 / 2012 , que regulamenta os exames de sobreclassificação , viria a estender a capacidade de realizar estes exames aos médicos especialistas em Medicina Desportiva porque , como se escreve no preâmbulo do Decreto acima referido “ A limitação da realização do exame de avaliação nos Centros de Medicina Desportiva para efeitos desta sobreclassificação apresenta- -se , nos nossos dias , como um claro obstáculo à realização desportiva ”, já que “ se verificam atualmente nos Centros de Medicina Desportiva , dificuldades infraestruturais e humanas sérias para assegurar o pontual e integral cumprimento da lei ” ( Decreto Lei 345 / 99 de 25 de Agosto ).
Esta declaração de incapacidade do organismo estatal deveria , em nossa opinião , levar a uma reflexão séria sobre a utilidade e a real motivação de um exame tão extenso , sem rigor científico e oneroso . Não nos parece que a sua não realização seja um obstáculo à participação desportiva , mas somos da opinião que se trata de uma agressão ao desenvolvimento físico e mental do atleta , saltando etapas fundamentais na sua formação .
Se quem regula a Medicina Desportiva tivesse feito tal reflexão , só teria um caminho – acabar definitivamente com o exame de sobreclassificação . Quando nos comparamos com os restantes países da Europa verificamos que somos praticamente os únicos a admitir a sobreclassificação ( ver texto ), o que neste caso concreto em nada nos pode orgulhar .
Esta alteração à lei teve como consequência um aumento de 92 % dos pedidos de sobreclassificação no primeiro ano da sua aplicação : passou-se de 326 pedidos em 2013 para 627 em 2014 ( Quadro 1 ). Da análise dos dados disponíveis no site do IPDJ relativos aos exames de sobreclassificação ( anos 2013 , 2014 e 2015 ), verificamos que a maior percentagem de pedidos é realizada por atletas do sexo feminino – mais de 70 % dos pedidos ( Quadro 1 ), sendo que a Federação Portuguesa de Futebol é preponderante : 87,9 % dos exames femininos pedidos em 2013 , 82,6 % em 2014 e 80,3 % em 2015 ( Quadro 2 ). Sabemos por experiência clínica e conhecimento da realidade desportiva que a motivação para os pedidos de realização destes exames , não é médica , mas sim administrativa . Portanto , não peçam aos médicos para que , baseando-se em critérios equívocos e cientificamente não validados , atribuam a um ( a ) atleta a possibilidade de jogar dois escalões acima do seu só porque a Federação não tem o escalão a que o atleta pertence .
No caso concreto do Futebol Feminino , é a inexistência de campeonatos em determinados escalões que obriga a atleta a recorrer ao exame de sobreclassificação . O Futebol Feminino só tem dois escalões com campeonato organizado : Séniores e Juniores ( Futebol de 7 ), permitindo que os outros escalões possam ser mistos ( Traquinas , Benjamins , Infantis , Iniciados e Juvenis ). Assim , a atleta que iniciou a prática desportiva e pretenda continuar a jogar vê-se perante dois caminhos : ou pede um exame de sobreclassificação ou passa a jogar integrada num escalão masculino . Contudo , estas equipas mistas são um problema logístico para a maior parte dos clubes , pois não têm infraestruturas suficientes ( como balneários ) para que as atletas femininas possam usufruir , acabando estas por ser preteridas em relação ao sexo masculino . Estas razões justificam o número de pedidos de sobreclassificação que atinge 10,5 % do total de todas as atletas filiadas na FPF até juniores em 2013 e 15,9 % em 2014 ( Quadros 3 e 4 ).
A análise dos Quadros 2 , 3 e 4 permite-nos ver que este problema não se coloca nas outras modalidades , em que os pedidos são residuais em relação ao número de atletas e não há desigualdade de género significativa , exceção feita ao pólo aquático em que os pedidos são todos de atletas masculinos . Não há também uma desigualdade do número de praticantes por género como no futebol , sendo que no voleibol o número de atletas femininos ultrapassa os masculinos .
Para além da falta de critérios homogéneos e cientificamente válidos , a sobreclassificação interrompe um processo de formação e aprendizagem técnica , tática , física e mental , levando o ( a ) atleta a pular etapas e a competir em escalões mais exigentes , quer no plano competitivo , quer na intensidade de treino , com potenciais implicações na ocorrência de lesões traumáticas e de sobrecarga . A sua inferioridade atlética e de maturação vai em muitas situações frustrar as ambições do atleta que é preterido em relação a outros atletas ,
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