Revista de Medicina Desportiva Informa Julho 2019 | Page 29
O hiperandrogenismo implica
tratamento em todas as mulheres,
desportistas ou não desportistas?
O tratamento do hiperandrogenismo
depende da sua causa, da sua
gravidade e das implicações que tem
na saúde de cada mulher, despor-
tista ou não desportista, devendo ser
sempre individualizado, como
qualquer tratamento.
Em situações de hiperandroge-
nismo ligeiro e moderado podem ser
utilizados contracetivos hormonais
combinados (estrogénios e progesta-
génios), medicamentos anti-andro-
génios, que bloqueiam os recetores
de androgénios ou que impedem a
conversão de testosterona em dihi-
drotestosterona, forma estimuladora
dos recetores de androgénios. Caso
o hiperandrogenismo tenha origem
nas glândulas suprarrenais pode ser
necessário recorrer a corticoterapia.
No PCOS poderão ser utilizados fár-
macos insulinossensibilizadores.
Perante hiperandrogenismo grave,
o tratamento é também realizado
com contracetivos hormonais, fár-
macos anti-androgénicos, bloquea-
dores de recetores de androgénios,
inibidores de enzimas que conver-
tem testosterona em dihidrotestos-
terona e eventualmente cirurgia. A
cirurgia está reservada para situa-
ções tumorais ou na prevenção de
tumores malignos, caso as gónadas
sejam de localização intra-abdomi-
nal.
O hiperandrogenismo interfere
com a fertilidade da mulher, cau-
sando situações de infertilidade e
abortos espontâneos. No entanto,
identificadas as causas de hiperan-
drogenismo e realizados tratamen-
tos específicos em função destas,
a maior parte das mulheres com
hiperandrogenismo torna-se fértil.
O caso da atleta Semenya?
Os resultados dos testes de verifica-
ção do sexo realizados à atleta Cas-
ter Semenya nunca foram revelados
por razões éticas, direito à privaci-
dade e direitos humanos. Torna-se
impossível saber ao certo a situação
clínica em que se inclui esta atleta.
Sabemos que foi proibida de com-
petir em provas internacionais pela
IAAF, por apresentar níveis muito
elevados de androgénios endógenos,
que foi submetida a testes de veri-
ficação de sexo e passados anos foi
readmitida a provas internacionais
competindo como mulher, desde que
apresentasse níveis de testosterona
circulante inferiores a 5 nmol/L. Em
2019, a atleta discorda desta recente
regulamentação e aguarda decisão
definitiva do Supremo Tribunal
Federal da Suíça contra a IAAF.
Existem doenças do desenvolvi-
mento sexual (DSD) em mulheres
que apresentam níveis de testos-
terona sérica muito elevados, com
valores idênticos aos dos homens
(4-5 vezes mais elevados que os
limites normais para mulheres).
Algumas atletas competindo em
provas classificadas para mulheres,
apresentam características físicas
de mulher (fenótipo), mas os seus
cromossomas são de homem 46XY
(genótipo), com diferentes graus de
androgenização e níveis de testos-
terona nos limites normais consi-
derados para homens. Esta doença
ocorre por mutações genéticas que
envolvem a produção de testoste-
rona, de dihidrotestosterona ou são
causadas por alterações na resposta
dos recetores de androgénios.
Há duas situações a considerar
perante o fenótipo de mulher com
genótipo 46XY: 1) deficiência em
5-alfa redutase, tipo 2 (5ARD2) que
impede a conversão de testosterona
em dihidrotestosterona e 2) síndrome
de insensibilidade aos androgénios
(AIS) causado pela mutação dos
recetores de androgénios dos
tecidos, que não respondem aos
androgénios e, neste caso, os eleva-
dos níveis de testosterona não
constituem qualquer vantagem
desportiva. Surge a questão: mulhe-
res com DSD e cromossomas sexuais
46XY devem competir em desportos
como mulheres ou como homens?
Outra forma de DSD em mulheres
com cromossomas sexuais 46XX
é a deficiência em 21-hidroxilase
(21OHD), forma mais comum de
hiperplasia congénita da suprarre-
nal, que pode variar em gravidade
e apresentar desde formas ligeiras
(forma não clássica), a formas graves
(forma clássica) incompatíveis com
a vida se não forem diagnosticadas
e tratadas precocemente. Há pro-
dução aumentada de androgénios,
as meninas com a forma clássica
podem apresentar diferentes graus
de virilização e genitália ambígua,
enquanto na forma não clássica as
meninas podem apresentar fenótipo
de mulher com hiperandrogenismo
idêntico ao PCOS.
Devido a estas doenças do desen-
volvimento sexual, com diferentes
formas de apresentação e diferentes
níveis de androgénios circulantes,
surgiu a necessidade de estabelecer
regulamentação para as competi-
ções desportivas e tentar equilibrar
as capacidades dos atletas que
competem em provas de mulheres.
Estabeleceram-se valores labora-
toriais de referências para níveis
normais de testosterona no sangue
de homens e mulheres saudáveis e,
para comparação com níveis de tes-
tosterona em indivíduos 46XYDSD,
mulheres 46XXDSD (21OHD) e
mulheres com hiperandrogenismo
por PCOS ou hiperplasia congénita
da suprarrenal forma não clássica. A
avaliação dos níveis de testosterona
sérica, do fenótipo e do genótipo
dos indivíduos poderão fornecer
informação científica racional para
desenvolver linhas orientadoras que
permitam decidir se atletas com as
condições referidas devem competir
em provas classificadas para mulhe-
res ou homens.
No caso da atleta Caster Semenya,
desconhecemos os resultados dos
testes de identificação de sexo, mas
a atleta foi autorizada a competir
como mulher se apresentasse níveis
de testosterona sérica abaixo de
5 nmol/L nos seis meses anteriores
às competições desportivas. Estes
valores de testosterona podem ser
alcançados com contracetivos hor-
monais e os tratamentos cirúrgicos
não são obrigatórios.
Atletas que não queiram realizar
tratamentos hormonais podem
praticar desportos em geral, exceto
em competições internacionais de
meia distância (onde se demonstrou
a vantagem hormonal do excesso de
androgénios nas competições
desportivas). Por outro lado, será
justo para uma atleta mulher
competir em provas de meio fundo a
par de atletas que têm níveis de
testosterona elevados e lhes propor-
cionam uma vantagem ergogénica
9% superior? Será esta situação
diferente de impedir mulheres
Continua na página 31
Revista de Medicina Desportiva informa julho 2019 · 27