PROJETO PONTO FIRME
O
primeiro dia da Semana de Moda de São
Paulo (SPFWN45) apresentou o desfile do Projeto
Ponto Firme, comandado pelo estilista Gustavo
Silvestre. O projeto existe há dois anos, quando o
estilista começou a ensinar crochê aos presidiários da
penitenciaria Desembargador Adriano Marrey, em
Guarulhos.
O Projeto desenvolve peças em crochê feitas pelos
detentos e leva 72 horas de aulas, divididas em 24
encontros, onde os presidiários começam aprendendo
pontos simples e confeccionando jogos americanos.
Quando começaram a pensar em roupas, Silvestre
convidou a artista plástica e estilista Karlla Girotto
para ensinar sobre o processo criativo de um desfile.
O resultado foi uma coleção baseada na premissa de
que um desfile é uma narrativa, que deve contar uma
história, e o grupo de 20 presidiários decidiu falar do
cotidiano da prisão através das roupas.
Logo no primeiro look, a camiseta branca com
pontos miúdos e a calça bege remetiam ao uniforme
da cadeia, que os detentos são obrigados a usar
diariamente. Algumas peças masculinas tinham corte
austero e uma mistura pesada de tons escuros.
Mochilas e toucas traziam aplicações escritas
‘Racionais’. E então vieram as cores: Amarelo ovo,
vermelho vivo, azul anil e laranja fosforescente...
Casacos traziam desenhos geométricos traçando tons
vibrantes e radicalmente contrastantes, peças em
algodão, sarja e flanela bordadas vieram com
pequenos bonecos e bichinhos de crochês bordados,
túnicas soltas sobre calças retas em preto e branco.
Aos criadores que não se encontraram na confecção
de roupas, Silvestre ensinou a técnica de moulage a
partir de toalhinhas chinesas de crochê, o que
resultou em interessantes vestidos franjados e
assimétricos.
“Para os alunos do projeto, o crochê significa uma
janela dentro da prisão, que traz cor e autonomia. O
processo criativo foi conduzido sempre pela visão que
eles têm do mundo”, conta Silvestre, lembrando que
a estilista Karlla Girotto deu um workshop sobre
criação para os detentos, antes de começarem a
produção das peças.
A mistura alegre de cores, por exemplo, segundo
Silvestre, representa a luz e as pessoas que vêm de fora
da prisão, como as mulheres, pais, mães, filhos e
amigos. Já a música disruptiva, com cortes bruscos e
zunidos estridentes, causava um desconforto proposital
-- tocou ainda um trecho de Diário de Um Detento, um
clássico dos Racionais MCs. “As composições são
100% dos alunos, que são verdadeiros artesãos e
coloristas. Tudo foi feito de maneira bem autoral”, diz
Silvestre.
Para apresentar a coleção, o casting foi formado por
pessoas comuns, muitos modelos negros e convidados
que de alguma forma tinham ligação com a
penitenciária. Duas gêmeas MCs que desfilaram, por
exemplo, são filhas de pais que já estiveram na cadeia.
Um ex-detento também participou do show. A cantora
Luedji Luna, em um longo branco de crochê, recitou
na passarela um trecho emocionante de sua música
Now Frágil, mencionando corpos vedados e
carcereiros, em um momento de contestação social.
"Eu era estilista, estava passando por um momento de
incerteza e o crochê mudou a minha vida, me trouxe
liberdade e autonomia.Não precisava mais de
modelista, cortador, estamparia, nada disso. Eu me
bastava com uma linha e uma agulha. Quando recebi o
convite para ensinar crochê na penitenciária, pensei
que isso poderia ser bom para eles, como foi para
mim", diz Silvestre. A imagem dos estilistas dentro da
cadeia projetada no final do desfile mostra que ele
estava certo.
MAIO 2018 - REVISTA AMOORENO - 25