Revista Amooreno Edição 04 - MAI/2018 | Page 25

PROJETO PONTO FIRME O primeiro dia da Semana de Moda de São Paulo (SPFWN45) apresentou o desfile do Projeto Ponto Firme, comandado pelo estilista Gustavo Silvestre. O projeto existe há dois anos, quando o estilista começou a ensinar crochê aos presidiários da penitenciaria Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. O Projeto desenvolve peças em crochê feitas pelos detentos e leva 72 horas de aulas, divididas em 24 encontros, onde os presidiários começam aprendendo pontos simples e confeccionando jogos americanos. Quando começaram a pensar em roupas, Silvestre convidou a artista plástica e estilista Karlla Girotto para ensinar sobre o processo criativo de um desfile. O resultado foi uma coleção baseada na premissa de que um desfile é uma narrativa, que deve contar uma história, e o grupo de 20 presidiários decidiu falar do cotidiano da prisão através das roupas. Logo no primeiro look, a camiseta branca com pontos miúdos e a calça bege remetiam ao uniforme da cadeia, que os detentos são obrigados a usar diariamente. Algumas peças masculinas tinham corte austero e uma mistura pesada de tons escuros. Mochilas e toucas traziam aplicações escritas ‘Racionais’. E então vieram as cores: Amarelo ovo, vermelho vivo, azul anil e laranja fosforescente... Casacos traziam desenhos geométricos traçando tons vibrantes e radicalmente contrastantes, peças em algodão, sarja e flanela bordadas vieram com pequenos bonecos e bichinhos de crochês bordados, túnicas soltas sobre calças retas em preto e branco. Aos criadores que não se encontraram na confecção de roupas, Silvestre ensinou a técnica de moulage a partir de toalhinhas chinesas de crochê, o que resultou em interessantes vestidos franjados e assimétricos. “Para os alunos do projeto, o crochê significa uma janela dentro da prisão, que traz cor e autonomia. O processo criativo foi conduzido sempre pela visão que eles têm do mundo”, conta Silvestre, lembrando que a estilista Karlla Girotto deu um workshop sobre criação para os detentos, antes de começarem a produção das peças. A mistura alegre de cores, por exemplo, segundo Silvestre, representa a luz e as pessoas que vêm de fora da prisão, como as mulheres, pais, mães, filhos e amigos. Já a música disruptiva, com cortes bruscos e zunidos estridentes, causava um desconforto proposital -- tocou ainda um trecho de Diário de Um Detento, um clássico dos Racionais MCs. “As composições são 100% dos alunos, que são verdadeiros artesãos e coloristas. Tudo foi feito de maneira bem autoral”, diz Silvestre. Para apresentar a coleção, o casting foi formado por pessoas comuns, muitos modelos negros e convidados que de alguma forma tinham ligação com a penitenciária. Duas gêmeas MCs que desfilaram, por exemplo, são filhas de pais que já estiveram na cadeia. Um ex-detento também participou do show. A cantora Luedji Luna, em um longo branco de crochê, recitou na passarela um trecho emocionante de sua música Now Frágil, mencionando corpos vedados e carcereiros, em um momento de contestação social. "Eu era estilista, estava passando por um momento de incerteza e o crochê mudou a minha vida, me trouxe liberdade e autonomia.Não precisava mais de modelista, cortador, estamparia, nada disso. Eu me bastava com uma linha e uma agulha. Quando recebi o convite para ensinar crochê na penitenciária, pensei que isso poderia ser bom para eles, como foi para mim", diz Silvestre. A imagem dos estilistas dentro da cadeia projetada no final do desfile mostra que ele estava certo. MAIO 2018 - REVISTA AMOORENO - 25