Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2015 | Page 95
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promessa. Insinua-se por toda parte, quase sempre ladeado por aquele outro afeto
com o qual mantém estreita afinidade: o ódio. Apesar de se falar tanto em segurança,
a precariedade é a marca do contemporâneo. Na fase atual do capitalismo, o destino
da massa humana de excedentes é a lata de lixo da história. Descartam-se homens e
mulheres com a mesma facilidade com a qual se lançam fora as mercadorias desatualizadas pelo ritmo frenético da produção. Na primazia absoluta e arrogante do econômico sobre o humano restam às agências de criminalização cumprir um desditoso
papel: vigiar as vidas desperdiçadas, no governo da insegurança social.
O crime não é um fenômeno natural. Uma análise crítica do exercício do poder punitivo é impensável desconsidera a dimensão política presente na seleção criminalizante; nos usos e abusos das agências de criminalização, essas instituições da ordem ou
a serviço de uma certa ideia de ordem. E aqui, é forçoso reconhecer, não há grandes
novidades entre nós. Nada de novo debaixo do sol, como no livro do Eclesiastes.
Ao longo de sua história, o Brasil tem se comportado como uma máquina de produzir
medo; um espantoso moinho de gastar gente, como dizia Darcy Ribeiro. Foi concebido, desde o século XVI, como uma empresa. Um empreendimento comercial com
fome de gente. Num certo sentido Drummond acerta o alvo ao afirmar em Brejo das
Almas: “Nenhum Brasil existe”. Afinal, países não podem ter donos. O Brasil tem. A
desigualdade brasileira não é um acidente da economia, mas um projeto a serviço dos
interesses de uma classe de malandros. Uma pilhagem secular, que a multidão das
criaturas humanas reduzidas à condição de refugo favorece. Uma sociedade profundamente hierarquizada, talvez explique a impotência do Leviatã nacional em elevar a
conservação da vida a critério de legitimação dos vínculos sociais.
Nunca fomos weberianos no que se refere à administração do direito de punir. O poder punitivo doméstico, inerente à lógica da escravidão, sempre grassou e desgraçou
entre nós, inviabilizando o exercício público do monopólio da força. Esse número
assombroso de quase 60.000 brasileiros e brasileiras triturados apenas em 2014, sendo um a cada dez minutos, constitui a mais perfeita expressão do modo brutal como
temos administrado conflitos sociais há séculos.
A cultura da brutalidade é inerente à sociedade baseada na escravidão, porque a brutalidade é a força exercida segundo o desejo de impressionar. É preciso aniquilar a
9. Os indicadores criminais
foram extraídos do 9°
relatório do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública.
Disponível em: .
Acesso em: 13 de dez. 2015
vontade, antes mesmo que o outro se ponha em movimento. Princípio básico de qualquer guerra. A atualidade da escravidão é o nosso belicismo. Herança do escravismo a
temperar nossas relações de classe. Um morto a cada dez minutos significa isso: uma
sociedade que compõe parte dos seus dramas com base na força sem regras.9 Trata-se
da manifestação cotidiana do poder punitivo doméstico, como à época das senzalas.
As agências de controle social são afetadas pela perspectiva bélica. Em qualquer parte
do mundo operam seletivamente. A produção legislativa é sempre maior que a capacidade operacional das instituições de criminalização secundárias, como as forças policiais, o Ministério Público, Poder Judiciário e sistema carcerário. Entre as inúmeras
condutas incriminadas, a preferência do olhar repressor incide quase exclusivamente
sobre os atos mais grosseiros, aqueles cometidos pelas classes subalternas, sobretudo porque há uma imagem pública do delinquente construída e alimentada todos os