RELATÓRIO FINAL DA SUBCOMISSÃO DA VERDADE NA DEMOCRACIA AS EXECUÇÕES SUMÁRIAS NO RJ | Page 3
e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro
digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo
chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina –
porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. Essa
justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por
precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo.
Nós, os sonsos essenciais”.
“Mineiriho” [fragmento],
Clarice Lispector
APRESENTAÇÃO
A instalação de uma Comissão da Verdade para apurar violações de direitos humanos
tende a olhar para o passado. Não apenas no sentido do tempo, mas, especialmente, na
direção de outro regime político. Nesses casos, a busca pela verdade parte de um
pressuposto simples: a elucidação daquilo que, à sombra da força autoritária, foi
escondido da sociedade. No governo da força, sabe-se do contexto geral que produz as
execuções sumárias – isto é, o regime autoritário em si – mas os detalhes a seu respeito
são desconhecidos. A busca da verdade, logo, se manifesta na investigação dos casos,
trazendo à tona vítimas, violadores, lugares, motivações, métodos e documentos oficias.
Porém, que verdade buscar quando todos esses elementos já estão presentes?
As execuções sumárias no tempo da democracia são fatos públicos. Notórios. De amplo
conhecimento. Sabe-se quem são os autores, quem são as vítimas, onde morreram, em
que circunstâncias, quem são as testemunhas e o que elas têm a dizer. Produzem-se
laudos, inquéritos, processos, dados estatísticos. Instauram-se comissões parlamentares,
tipificam-se novas condutas, ampliam-se os poderes institucionais de atores públicos
consagrados à defesa da liberdade. Publicam-se matérias jornalísticas, artigos
científicos, depoimentos em redes sociais. Todas as verdades estão à disposição de
qualquer cidadão. E nesse caso específico, qual verdade se deve buscar uma Comissão
da Verdade à qual todas as verdades se encontram disponíveis?
A inclinação natural nos primeiros momentos da pesquisa corria no sentido mais lógico
das comissões da verdade, isto é, o levantamento e destrinchamento dos episódios
envolvendo execuções sumárias no estado do Rio de Janeiro. No entanto, não há nada
de novo nas chacinas e execuções sumárias quando analisamos os casos
individualmente. Na história das chacinas e execuções sumárias desse estado não
existem fatos isolados. A única coisa singular nos casos de execução sumária são as
pessoas em si. Não se pode morrer duas vezes. Nesse sentido, as mortes produzidas