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pensar mundo unido
A primeira imagem que tive de minha vida foi, secretamente,
a do missionário. Logo depois delineou-se a imagem pública, a
do artista. Assim, naquela idade em que a maioria não sabe o
que vai fazer mais tarde, eu dava a impressão de ser um rapaz
muito decidido. No mundo da arte, entendido no sentido mais
amplo, sentia vocação para tudo e, se nunca desejei me tornar
um aviador ou corredor de automóvel, sonhei algumas vezes ser
ator, cineasta, cantor, costureiro de alta moda, ourives e, naturalmente, escultor e pintor. Escolhi a arquitetura mais por raciocínio
que por amor, pensando que essa formação, de alguma forma,
seria aquela que me negaria menos possibilidades. O cineasta
Antonioni era arquiteto, assim como o organista Grünewald. O
arquiteto Le Corbusier era pintor e escultor; Michelângelo foi tudo
isso e, ainda por cima, poeta. A imagem do missionário saiu de
foco e dissolveu-se, deixando em seu lugar Vivaldi, o padre vermelho, ou Fra Angélico, o pintor do Paraíso. Sacerdócio e arte
quase se sobrepunham na consciência que eu tinha de mim
mesmo. O artista que dava uma vida independente à matéria
inerte não estava longe do sacerdócio. Eu concedia ao sacerdote
uma certa superioridade, porque a comunhão à qual ele convidava era mais perfeita, ainda que menos acessível. O sacerdote
anunciava a crua palavra de Deus àqueles que tivessem ouvidos
para escutá-la; o artista habituava os ouvidos às dissonâncias do
sublime e seus alimentos terrestres formavam o gosto pelos alimentos do céu. Se a arte era uma vocação, a vida de artista evocava o sacerdócio como sua lógica coroação. Qualquer trabalho
humano é, sem dúvida, um sacerdócio leigo; no entanto, mais
que qualquer outra coisa, é a arte que eleva a alma.
A arte sacra
Mas, por que diabos as igrejas devem ser tão feias, os fiéis tão
tristes e as piedosas mulheres assim tão mal vestidas? Por que sagrado foi, tantas vezes, sinônimo de meloso? Harmonia, harmonia,
quantos horrores se cometeram em teu nome! O meloso era confundido com doçura, a banalidade com a medida, a simetria com a
composição, a ênfase com a dignidade, a rigidez com a ordem, a
inflexibilidade com a nobreza e a monotonia com a simplicidade.
Saí, certa vez, pela rua, e o asfalto, amolecido pelo sol escaldante, afundava sob meus pés. Naveguei à deriva no fluxo de
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