Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia Volume Especial COVID-19 | Page 8

Editorial

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PATHOS / V. Especial , Set. 2020 07

Em Crônicas de uma conquista, publicado em 1993, Lévi-Strauss relata que não seriam “apenas os índios, mas também os brancos” a serem “ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias introduzidas por estes últimos”, já que todos seriam “arrastados pela mesma catástrofe” (p. 7). Eis uma sabedoria yanomami para os nossos atuais e vindouros tempos, ao nos colocar frente aos equívocos de insistirmos em um modo de vida centrado no individualismo liberal e a expensas do coletivo.

A peste, saibamos, não é a causa desta catástrofe, mas apenas seu resultado mais ou menos imediato. Em outras palavras, a crise sanitária sucede à crise social e econômica que lhe dá fundamento – uma espécie de variação das reiteradas crises do Capitalismo. A atual peste permite que nos deparemos com o óbvio – apesar de ameaçar mais expressivamente a maioria sempre desprivilegiada da população – expondo a todos à potencial condição de miserabilidade.

Ao longo destes pouco mais de cem dias de solidão, nossa geração pôde aprender que: 1-) uma sociedade sustenta-se na condição de cada um fazer a sua parte como cidadão, isto é, participante da coisa pública; 2-) de que não existe República sem estratégias políticas voltadas, efetivamente, a sua população; 3-) escancara que a condição de isolamento produz modalidades de sofrimento que eram, até então, inéditas ou reservadas àqueles que adentravam o sistema dos manicômios, prisões e conventos; 4-) aponta que a quarentena é tática do medievo e pode muito bem servir aos interesses estatais de se esquivarem do dever que têm de garantir políticas sociais públicas, como de saúde, ciência e tecnologia; 5-) além de atestar o que a pós-modernidade nos traz de pior, a saber, a estupidez calcada na pós-verdade, em que até mesmo a Terra foi tornada plana.