Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia Volume Especial COVID-19 | Page 40

Isso nos levaria a desenvolver curiosidades e questionamentos, do porquê algumas crianças, no combate ao coronavirus, se identificam com a super-heroína mulher-maravilha e outras com a personagem Elsa do filme Frozen, ou então porque uns assumem o lugar do sombrio e isolado do Batman e, outros, do assustador e verde Hulk, ou ainda criam e fantasiam novos super-heróis com novos superpoderes, como se os existentes não dessem conta do vírus.

O que poderíamos dizer, baseado no pensamento freudiano é que elementos inconscientes e etiológicos de cada criança estariam presentes em tal identificação, ao que se debruçarmo-nos sobre cada criança pesquisada, certamente encontraríamos elementos presentes que ligariam, de alguma forma, a história do personagem escolhido com a história pessoal de cada criança.

Como ilustração de tal processo de identificação podemos citar um caso de uma criança acolhida institucionalmente que foi por nós acompanhada em supervisão. Tal criança, uma menina de aproximadamente 9 anos de idade, trazia em seu histórico de vida uma situação de abuso sexual intrafamiliar, sendo esse um dos motivos do acolhimento institucional. Essa menina chega à instituição trazendo em suas falas muitas referências acerca do filme infantil intitulado como A Pequena Sereia. Tudo girava em torno da personagem, e a princípio a equipe técnica do abrigo não conseguia identificar os motivos de tantas referências e identificações acerca da personagem. Com o passar do tempo, a partir dos relatos dessa menina, fomos percebendo o quanto a história da Pequena Sereia e a escolha do personagem como elemento de identificação diziam acerca daquela criança. A criança relatava que gostava muito do personagem e que as vezes gostaria de ser ela, afirmando que: “Enquanto eu estiver no fundo do mar, eu vou estar protegida” (sic). Dizia que as escamas da calda do rabo da Sereia a protegiam, fazendo um paralelo gestual como se o rabo de peixe da personagem cobrisse suas partes intimas, a protegendo. Nesse momento, foi percebido que tal criança buscava na figura fictícia da história infantil uma forma de entrar em contado com o trauma do abuso sexual vivido, e a partir de outros detalhes da história infantil, elaborar sua própria história.

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PATHOS / V. Especial , Set. 2020 39