Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 11ºb Volume | Page 26

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Mesmo com a implantação do ensino público, observa-se ainda a seletividade do acesso dessas crianças ao espaço da escolarização, mesmo que sob o entendimento da sua importância para a transformação deles em cidadãos úteis e produtivos, ou seja, havia distinção entre crianças que podiam ou não acessar esse espaço de sociabilidade. Às pobres, provavelmente mulatas e negras, reservava espaço quando se tratavam daquelas que demonstravam “acentuada distinção e capacidade”. (Priore, 2012, p. 236, grifos do autor).

A discussão e o tratamento dado pelo Estado à infância e juventude da classe trabalhadora empobrecida se deram pelo controle de seus corpos, sobretudo nos espaços públicos; as crianças pequenas eram destinadas à Roda dos Expostos e, aos considerados, pela legislação da época, de 9 a 14 anos, a punição, desde que se comprovasse o discernimento; e aos de 14 a 17 anos, o recolhimento em estabelecimento correcional, obviamente não existentes nesse período; desse modo, era comum serem recolhidos, em prisões com adultos.

Diversas foram as estratégias adotadas pelo Estado. Há registros, por exemplo, de 1871, na ocasião da Lei do Ventre Livre, de muitos senhores que entregavam as crianças para os cuidados do governo, de modo a serem recompensados pelos prejuízos nos cuidados e na alimentação. Já no contexto pós-abolição da escravatura e, consequentemente, com o crescimento das cidades, a presença de crianças e adolescentes, em especial pretas e pardas, emerge como um problema de responsabilidade do Estado, este que, sob a égide de garantir as condições gerais de produção e a hegemonia da classe dominante, aplica as ações higienistas que garantissem a retirada desse público dos espaços comuns.

Quando das grandes reformas urbanas que atingiram as capitais dos estados, no final do século XIX, vozes como as de Cândido Motta, Moncorvo Filho e Bush Varella, juristas e médicos, imprecavam contra a presença crescente de crianças nas ruas — as negras eram maioria — exigindo solução para estancar a circulação destes “desgraçados, sem teto, sem lar, sem educação, sem instrução e sem ordem”. Na República, recém-proclamada e que ostentava na bandeira o lema “Ordem e Progresso”, a infância negra prometia desordem e atraso. (Priore, 2012, p. 238, grifos do autor).

PATHOS / V. 11, n.01, 2020 25