Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 10º Volume | Page 86

Psicoterapia

(Ilha do medo)

Rafael de Abreu Ferreira

Apresentações de caso, palestras sobre as novas medicações recém-liberadas pelo FDA, mesas redondas... Creio que o cenário esteja estabelecido. Resolvi vir para o congresso da American Psychiatric Association (APA) em Boston, Massachusetts.

Após alguns coffee breaks nos saguões do hotel, precisava de um intervalo daquele ar carregado, típico de um ambiente fechado e repleto de humanos. Por que não aproveitar o ar fresco de um final de tarde de outono? Um vento um pouco mais frio talvez recarregue as minhas energias.

Subo ao terraço do hotel, para também poder apreciar a vista da cidade. Ao chegar, deparo-me com um deslumbrante pôr-do-sol alaranjado, com poucas nuvens, suficientes para refletir aqueles últimos raios de sol.

Por alguns instantes, fico absorto em meus pensamentos, suspenso da realidade dos arredores, mas, rapidamente, sou puxado à terra.

“Enjoado daquele ar tóxico?”, pergunta uma voz cansada de um homem de mais idade.

Olho para o lado e vejo um homem velho, chuto já ter seus 90 anos, debruçado sobre o parapeito que cerca o terraço. Perigosamente debruçado? Ao me aproximar, noto que esteve chorando. “Perigosamente debruçado” reverbera em minha mente.

“Não diria tóxico”, suavizo, “mas, sim, enjoei daquele ar carregado”.

Estendo-lhe a mão: “me chamo Rafael, prazer em conhecê-lo!”.

“Rafael...” repete, rolando cuidadosamente cada sílaba pela língua.

“Lester Sheehan, o prazer é todo meu”. Não ressoa, mas era perceptível que ele estava se esforçando. “Pelo jeito, você não é daqui. Sem querer ser rude, mas de onde você vem?”.

“De forma alguma, sou brasileiro. O que me entregou? Minha aura latina?” provoco.

Para a minha surpresa, um sorriso aparece pelo canto da boca: “Certamente não foi o seu sotaque”, retribuiu a provocação.

“Bom, mas sem querer ser rude, não pude deixar de notar que o senhor esteve chorando e debruçado sobre o parapeito de uma forma pouco convencional, devo me preocupar?”, tateio pela situação delicada materializada diante de mim.

PATHOS / V. 10, n.03, 2019 85

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