O voo da Gaivota 1 | Page 31

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Procuro um refúgio que amo . ( Como não podia deixar de ser , levo a injeção .)
Sinto aquele reflexo de fuga de cada vez que querem impor-me alguma coisa , ou quando não entendo . Quer se trate de acabar a sopa , quer de uma injecção , uma qualquer forma de quererem forçar-me , reajo como posso , visto não ter o uso da
palavra . Uma acção serve-me de discurso . Na verdade devo dizer que aquela reacção de fuga perante uma ordem se mistura
também com a minha maneira de ser . Sou independente , voluntariosa , obstinada . A solidão do silêncio talvez tenha contribuído para o acentuar . É " tifiti " de dizer ...
7 Chamo-me " Eu "
Mas Emmanuelle é de algum modo uma pessoa exterior a mim . Como um duplo . Quando falo comigo digo : " A Emmanuelle não te ouve ." “ A Emmanuelle fez isto , fez aquilo ..."
Em mim , transporto a Emmanuelle surda e tento falar para ela , como se fôssemos duas .
Também sei dizer mais algumas palavras , umas que consigo articular mais ou menos bem , outras não .
O método ortofónico consiste em colocar a mão sobre a garganta do educador para sentir as vibrações da pronúncia . Aprendem-se os r , o r vibra como ra . Aprendem-se os f , os ch . O ch coloca-me um problema , a coisa não funciona . Das consoantes para as vogais , sobretudo das consoantes , passa-se para as palavras inteiras . Durante horas repete-se a mesma palavra . Imito o que vejo nos lábios da ortofonista , com a mão no seu pescoço ; imito como um macaquinho .
De cada vez que se diz uma palavra , aparece uma frequência na tela de um aparelho . Linhas verdes , como as de um electrocardiograma feito nos hospitais , que dançam diante dos
meus olhos . É preciso seguir aquelas linhas que sobem , e descem , caem , e saltam e voltam a cair .