O voo da Gaivota 1 | Page 29

29
disso? Pretendo também saber qual a diferença entre mim e o meu amigo.
Estamos de férias na Provença, em Lurs. Brincamos os dois na água e como somos pequenos não temos fato de banho. A diferença é bem visível entre ele e eu. Acho engraçado. Mas é simples, já compreendi: somos duas crianças surdas mas não somos bem iguais.
Eu sou igual à minha mãe, embora ela ouça e eu não. Ela é alta e eu não o serei um dia. Tanto o meu pequeno companheiro como eu, brevemente " terminamos ". Estamos na época em que ainda não tínhamos encontrado adultos surdos, e é para nós impossível pensar que, sendo surdos, havemos de crescer. Não há referências, não há nenhum ponto de comparação que nos permita pensá-lo. Portanto, não tarda que " partamos ", que " terminemos ", enfim. Na realidade, que a morte chegue. E quando eu morrer acho que a minha " alma " irá habitar o corpo de outro bebê, mas esse bebê poderá ouvir. Acerca dessa estranha mutação não tenho explicações. Como é que eu sei que tenho alma? A que é que eu chamo alma naquela idade?
Compreendi-o à minha maneira ao ver um desenho animado na televisão. Trata-se da história de uma menina. Durante muito tempo não se vêem imagens dos pais dela, de forma que parto do princípio que desapareceram, como o gato branco...
Partir é igual a morrer. Convenço-me pois que morreram. Mais tarde a menina volta a encontrar os pais; como é evidente, são as mesmas pessoas do princípio do filme. Tinha-os perdido, simplesmente. Mas eu contei outra história a mim mesma: os pais regressaram da morte e alojaram-se noutros corpos. É isso que eu chamo uma alma: partir e regressar ". Isso é que é uma alma, uma coisa que se tem ou que se é, que parte e regressa.
Aos cinco ou seis anos a aprendizagem dos conceitos já é difícil para uma criança que ouve; para mim, não podiam senão basear-se em imagens visuais. E é por isso que quando eu " terminar ", quando chegar a minha vez de partir, assim como o meu colega, as nossas almas virão habitar os corpos de outros bebês. Mas eles hão de poder ouvir. E se eu decido na minha cabeça de criança surda que a outra criança que herdará o meu lugar poderá ouvir, é porque talvez naquela idade eu já lamentava o fato de não ouvir. De não possuir ainda uma linguagem libertadora.
Devo ter misturado o desaparecimento do gato branco e este desenho animado para construir uma idéia da morte.