O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 30
PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO
DA
L EITURA
piscar de olhos, a silhueta retirou-se para as sombras e quando cheguei ao salão não
havia mais ninguém. Um sopro de luz procedente de um cartaz luminoso suspenso do
outro lado da Rua inundou a sala por um segundo, revelando um pequeno monte de
escombros empilhados contra a parede. Aproximei-me e ajoelhei diante dos restos
carcomidos pelo fogo. Algo se destacava na pilha. Dedos. Comecei a retirar as cinzas e o
contorno de uma mão aflorou lentamente. Peguei-a e, ao puxá-la, vi que estava cortada na
altura do punho. Reconheci imediatamente a mão daquela menina e compreendi que não
era de madeira como pensei, mas de porcelana. Deixei a mão cair de novo sobre os
escombros e afastei-me de lá.
Duvidei se não teria imaginado aquela silhueta, pois não havia pegadas na poeira.
Desci para a Rua de novo e fiquei na calçada ao pé do edifício, examinando as janelas do
primeiro andar, completamente confuso. As pessoas passavam a meu lado rindo, alheias à
minha presença. Tentei reconhecer a silhueta do desconhecido na multidão. Sabia que
estava ali, talvez a uns poucos metros, observando-me.
De repente, resolvi atravessar a Rua e entrar num café acanhado e abarrotado de
gente. Consegui abrir espaço no balcão e fiz sinal para o garçom.
— O que deseja?
Tinha a boca seca e arenosa.
— Uma cerveja — improvisei.
Enquanto o garçom me servia a bebida, inclinei-me em sua direção.
— Ouça, sabe se o local aí da frente, El Ensueño, está fechado?
O garçom deixou o copo no balcão e olhou-me como se eu fosse idiota.
— Está fechado há 15 anos — disse.
— Tem certeza?
— Claro. Não voltou a abrir depois do incêndio. Mais alguma coisa?
Neguei.
— São quatro cêntimos.
Paguei a consumação e fui embora sem nem tocar no copo.
No dia seguinte, cheguei à redação do jornal antes da minha hora e fui direto para os
arquivos do sótão. Com a ajuda de Matías, o encarregado, e guiando-me pelo que o
garçom tinha me contado, comecei a consultar as manchetes de La Voz de la Industria de
15 anos atrás. Precisei de cerca de quarenta minutos para achar a história, apenas uma
nota. O incêndio tinha acontecido durante a madrugada do dia de Corpus Christi, em 1903.
Seis pessoas tinham morrido presas entre as chamas: um cliente, quatro profissionais do