O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 22

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA de aprender a arte da direção motorizada e deixasse carroças e carruagens para trás, Vidal poderia usá-lo como motorista, pois na época os jovens senhores não sujavam suas mãos em máquinas de combustão nem em mecanismos com escapamentos gasosos. Manuel, é claro, aceitou. Depois de semelhante resgate da miséria, a versão oficial garantia que Manuel Sagnier e sua família nutriam uma devoção cega por Vidal, eterno paladino dos deserdados. Eu não sabia se devia acreditar naquela história ao pé da letra ou acrescentá-la ao longo rosário de lendas tecidas ao redor do mito do aristocrata bondoso que Vidal cultivava: às vezes, parecia que só lhe faltava surgir envolto num halo luminoso para alguma pastorinha órfã. — Você está com aquela cara de pilantra que tem, quando se entrega a pensamentos maliciosos — comentou Vidal. — O que anda tramando? — Nada. Só estava pensando na sua bondade, dom Pedro. — Na sua idade e na sua posição, o cinismo não abre portas. — Isso explica tudo. — Ande, cumprimente o nosso bom Manuel. Ele sempre pergunta por você. Cheguei à janela e o motorista, que sempre me tratava como um lorde e não como o pé-rapado que eu era, cumprimentou de longe. Devolvi o aceno. Sentada no banco ao lado do motorista, estava sua filha Cristina, uma criatura de pele pálida e lábios que pareciam desenhados, com uns dois anos a mais que eu, e que tinha me tirado o fôlego desde a primeira vez em que Vidal me convidou para visitar a Villa Helius. — Não olhe assim, que ela vai quebrar — murmurou Vidal às minhas costas. Virei e topei com aquela expressão maquiavélica que Vidal reservava para os assuntos do coração e outras vísceras nobres. — Não sei do que está falando. — Que sinceridade... — replicou Vidal. — E então, o que vai fazer com o convite dessa noite? Reli o bilhete e hesitei. — Ainda freqüenta esse tipo de local, dom Pedro? — Não pago por uma mulher desde que tinha 15 anos e, tecnicamente, foi meu pai quem pagou — replicou Vidal, sem arrogância alguma. — Mas a cavalo dado... — Não sei não, dom Pedro. — Claro que sabe. A caminho da porta, Vidal deu uma palmadinha em meu ombro.