O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 21

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA Deixei passar uma pausa grave como uma ovação silenciosa. Vidal era um ouvinte aficcionado da ópera e, com o tempo, o ritmo e a entonação das grandes árias tinham penetrado sua pele. Nunca faltava a seu encontro com Puccini no teatro del Liceo, no camarote familiar. Era um dos poucos, além dos infelizes amontoados na torrinha do teatro, que iam à ópera para ouvir a música que tanto amava e que tanto influenciava os discursos sobre o divino e o humano com que, às vezes, como naquele dia, presenteava meus ouvidos. — O que foi? — perguntou Vidal desafiante. — Esse último parágrafo me lembra alguma coisa. Apanhado com a mão na massa, suspirou e concordou. — É de Assassinato no Círculo do Liceu — admitiu Vidal. — A cena final em que Miranda LaFleur atira no perverso marquês que destroçou seu coração, traindo-a na suite nupcial do hotel Colón, numa noite de paixão com a espiã do czar, Svetlana Ivanova. — Bem que eu reconheci. Não podia ter escolhido melhor. É sua obra máxima, dom Pedro. Vidal sorriu para o elogio e pensou em acender outro cigarro. — O que não impede que haja algo de verdade em tudo isso — rematou. Vidal sentou no parapeito da janela, não sem antes colocar um lenço, para não manchar suas calças de alta classe. Vi que a Hispano-Suiza estava estacionada mais embaixo, na esquina da Rua Princesa. O motorista, Manuel, lustrava os cromados com um pano, como se tratasse de uma escultura de Rodin. Manuel me lembrava muito o meu pai, homens da mesma geração que passaram por muitos infortúnios e que carregavam a memória estampada no rosto. Os empregados da Villa Helius contavam que Manuel Sagnier tinha passado uma longa temporada na prisão e que, ao sair, tinha sofrido anos de penúria porque o único emprego que conseguia era de estivador, descarregando sacos e caixas no cais, um trabalho para o qual não tinha mais idade, nem saúde. A história rezava que, em certa ocasião, arriscando a própria vida, Manuel tinha salvo dom Pedro de morrer atropelado por um bonde. Em sinal de agradecimento, ao saber da penosa situação do pobre homem, Vidal lhe ofereceu trabalho e a oportunidade de se mudar, com a esposa e a filha, para o pequeno apartamento localizado em cima das cocheiras de Villa Helius. Garantiu que a pequena Cristina estudaria com os mesmos professores que davam aulas aos filhotes da dinastia Vidal, todo dia, na casa da avenida Pearson, e que sua esposa poderia desempenhar o ofício de costureira para a família. Como andava pensando em adquirir um dos primeiros automóveis comercializados em Barcelona, se Manuel tratasse