Notícias da Seara JORNAL 17 (1) | Page 6

Goiânia , Janeiro / Fevereiro de 2018
ENSINAMENTOS DO CHICO
Foi numa daquelas madrugadas , de reunião do Grupo Espírita da Prece , que o vi pela primeira vez . Naquelas filas quase intermináveis , que se formavam para a despedida ou para uma última palavrinha com Chico , ele chamou-me a atenção pela alegria com que esperava a sua vez . Vinha com passos cansados , andar trôpego , fisionomia abatida , mas seus olhos brilhavam à medida que se aproximava do médium . Não raro , seu contentamento se traduzia em lágrimas serenas , mas copiosas . Trajes pobres , descalço , pés rachados , indicando que raramente teriam conhecido um par de sapatos . Calça azul , camisa verde , com muitos remendos ; um paletó de casimira apertava-lhe o corpo franzino . Pele escura , cabelos enrolados , nos lábios uma ferida . Chamava-se Jorge . Creio que deve ter tomado poucos banhos durante a vida . Quando se aproximava , seu corpo magro , sofrido e mal alimentado exalava um odor desagradável . Em sua boca , alguns raros tocos de dentes , totalmente apodrecidos . Quando falava , seu hálito era quase insuportável . Ainda que alguém não quisesse , tinha um movimento instintivo de recuo . Quando se aproximava , tínhamos pressa em dar-lhe algum trocado , a fim de que saísse logo de perto da gente .
Jorge morava com o irmão e a cunhada numa favela muito pobre . Seu quarto era um pequeno cômodo anexado ao barraco do irmão . Algumas telhas , pedaços de tábuas , plásticos e folhas de lata emolduravam o seu pequeno espaço . O irmão e a cunhada eram bóias-frias . Jorge ficava com as crianças . Fazia-lhes mingau , trocava-lhes os panos , assistiaos . Acredito que sofresse maus tratos . Muitas vezes o vi com marcas no rosto e , ainda hoje , fico pensando se aquela ferida em seu lábio inferior não seria resultante de constantes pancadas . O Chico conversava com ele , cinco , dez , vinte minutos . Nas primeiras vezes , pensava : " Meu Deus ! Como é que o Chico pode perder tanto tempo com ele , quando tantas pessoas viajaram milhares de quilômetros e mal pegaram sua mão ? Por que será que ele não diminui o tempo do Jorge para dar mais atenção aos outros ?" Somente mais tarde fui entender que a única pessoa capaz de parar para ouvir o Jorge era ele . Em casa , o infeliz não tinha com quem conversar ; na rua , ninguém lhe dava atenção . Quase todas as vezes em que lá estive , lá estava ele também . Assim , por alguns anos , habituei-me a ver aquele estranho personagem que , aos poucos , me foi cativando . Hoje , passados tantos anos , ao escrever estas linhas ainda choro . Nunca ouvimos de sua boca qualquer palavra de queixa ou revolta . Seu diálogo com o paciente médium era comovente e enternecedor : - “ Jorge , como vai a vida ?” - “ Ah , Tio Chico , eu acho a vida uma beleza !” - “ E a viagem , foi boa ?” - “ Muito boa , Tio Chico ! Eu vim olhando as flores que Deus plantou no caminho para nos alegrar !”
- “ Do que você mais gosta de olhar , Jorge ?”
- “ O azul do céu , Tio Chico ! Às vezes penso que o Sinhô Jesus tá me espiando por detrás de uma nuvem !”
Depois o visitante falava da briga dos gatos , da goteira que molhou a cama , do passarinho que estava fazendo ninho no seu telhado . Quando pensava que tudo havia terminado , o Chico ainda dizia :
- “ Agora , o nosso Jorge vai declamar alguns versos ”.
Eu chegava até a me virar na cadeira , perguntando a mim mesmo : " Onde é que o Chico arruma tanta paciência ?"
Jorge declamava um , dois , quatro versos .
- “ Bem , Jorge , agora , para a nossa despedida , declame o verso que mais gosto .”
- “ Qual , tio Chico ?” - “ Aquele , da moça !” - “ Ah , Tio Chico ! Já me lembrei . Já me lembrei !!!”
Jorge colocava o colarinho da camisa para fora , abotoava o único botão de seu surrado paletó , colocava as mãos para trás , à semelhança de uma criança quando vai declamar na escola , ou perante uma autoridade , e sapecava , inflado de orgulho :
- " Menina , penteia o cabelo . Joga as tranças para a cacunda . Queira Deus que não te leve de domingo pra segunda !"
Quando terminava , o riso era geral . Ele também sorria solto e alegre , mas ainda assim doído , pois a parte inferior de seus lábios se dilatava , fazendo sangrar a ferida . Aí ele se aproximava do médium , que lhe dava uma pequena ajuda em dinheiro . Para se despedir , ele se jogava todo por inteiro , em cima do Chico ! Falava quase dentro do nariz do Chico e eu nunca o vi ter aquele recuo instintivo como eu tivera tantas vezes . O Chico beijavalhe a mão e a face e ele retribuía , beijando os dois lados da face do Chico , onde ficavam manchas de sangue deixadas pela ferida aberta em seus lábios . Nunca vi o Chico se limpar na presença dele nem depois que ele se tivesse ido .
Não saberia dizer quantas vezes pensei em levar um presente àquele pobre irmão - uma camisa ... um par de sapatos ... uma blusa . Infelizmente , fui adiando e o tempo passando . Acabei por não lhe levar nada . Lembrome disso com tristeza e as palavras do apóstolo Paulo se fazem mais fortes nos recessos de minha alma : " Façamos o bem , enquanto temos tempo ". De repente , ficou tarde demais . Jorge desencarnou numa madrugada fria , completamente só em seu quarto , esquecido do mundo , esquecido de todos , mas não de Deus . Contou-me o Chico que foi este nosso irmão de pele escura , cabelos enrolados , ferida nos lábios , pés rachados e mau cheiro que , ao desencarnar , Jesus veio pessoalmente buscar . Entrou naquele quarto de terra batida , retirou Jorge do corpo magro e sofrido , aconchegou-o de encontro ao peito e voou com ele para o espaço , como se carregasse o mais querido dos seus irmãos !
Adelino da Silveira