Goiânia, Janeiro / Fevereiro de 2018
ENSINAMENTOS DO CHICO
Foi numa daquelas madrugadas, de reunião do Grupo Espírita da Prece, que o vi pela primeira vez. Naquelas filas quase intermináveis, que se formavam para a despedida ou para uma última palavrinha com Chico, ele chamou-me a atenção pela alegria com que esperava a sua vez. Vinha com passos cansados, andar trôpego, fisionomia abatida, mas seus olhos brilhavam à medida que se aproximava do médium. Não raro, seu contentamento se traduzia em lágrimas serenas, mas copiosas. Trajes pobres, descalço, pés rachados, indicando que raramente teriam conhecido um par de sapatos. Calça azul, camisa verde, com muitos remendos; um paletó de casimira apertava-lhe o corpo franzino. Pele escura, cabelos enrolados, nos lábios uma ferida. Chamava-se Jorge. Creio que deve ter tomado poucos banhos durante a vida. Quando se aproximava, seu corpo magro, sofrido e mal alimentado exalava um odor desagradável. Em sua boca, alguns raros tocos de dentes, totalmente apodrecidos. Quando falava, seu hálito era quase insuportável. Ainda que alguém não quisesse, tinha um movimento instintivo de recuo. Quando se aproximava, tínhamos pressa em dar-lhe algum trocado, a fim de que saísse logo de perto da gente.
Jorge morava com o irmão e a cunhada numa favela muito pobre. Seu quarto era um pequeno cômodo anexado ao barraco do irmão. Algumas telhas, pedaços de tábuas, plásticos e folhas de lata emolduravam o seu pequeno espaço. O irmão e a cunhada eram bóias-frias. Jorge ficava com as crianças. Fazia-lhes mingau, trocava-lhes os panos, assistiaos. Acredito que sofresse maus tratos. Muitas vezes o vi com marcas no rosto e, ainda hoje, fico pensando se aquela ferida em seu lábio inferior não seria resultante de constantes pancadas. O Chico conversava com ele, cinco, dez, vinte minutos. Nas primeiras vezes, pensava: " Meu Deus! Como é que o Chico pode perder tanto tempo com ele, quando tantas pessoas viajaram milhares de quilômetros e mal pegaram sua mão? Por que será que ele não diminui o tempo do Jorge para dar mais atenção aos outros?" Somente mais tarde fui entender que a única pessoa capaz de parar para ouvir o Jorge era ele. Em casa, o infeliz não tinha com quem conversar; na rua, ninguém lhe dava atenção. Quase todas as vezes em que lá estive, lá estava ele também. Assim, por alguns anos, habituei-me a ver aquele estranho personagem que, aos poucos, me foi cativando. Hoje, passados tantos anos, ao escrever estas linhas ainda choro. Nunca ouvimos de sua boca qualquer palavra de queixa ou revolta. Seu diálogo com o paciente médium era comovente e enternecedor:-“ Jorge, como vai a vida?”-“ Ah, Tio Chico, eu acho a vida uma beleza!”-“ E a viagem, foi boa?”-“ Muito boa, Tio Chico! Eu vim olhando as flores que Deus plantou no caminho para nos alegrar!”
-“ Do que você mais gosta de olhar, Jorge?”
-“ O azul do céu, Tio Chico! Às vezes penso que o Sinhô Jesus tá me espiando por detrás de uma nuvem!”
Depois o visitante falava da briga dos gatos, da goteira que molhou a cama, do passarinho que estava fazendo ninho no seu telhado. Quando pensava que tudo havia terminado, o Chico ainda dizia:
-“ Agora, o nosso Jorge vai declamar alguns versos”.
Eu chegava até a me virar na cadeira, perguntando a mim mesmo: " Onde é que o Chico arruma tanta paciência?"
Jorge declamava um, dois, quatro versos.
-“ Bem, Jorge, agora, para a nossa despedida, declame o verso que mais gosto.”
-“ Qual, tio Chico?”-“ Aquele, da moça!”-“ Ah, Tio Chico! Já me lembrei. Já me lembrei!!!”
Jorge colocava o colarinho da camisa para fora, abotoava o único botão de seu surrado paletó, colocava as mãos para trás, à semelhança de uma criança quando vai declamar na escola, ou perante uma autoridade, e sapecava, inflado de orgulho:
- " Menina, penteia o cabelo. Joga as tranças para a cacunda. Queira Deus que não te leve de domingo pra segunda!"
Quando terminava, o riso era geral. Ele também sorria solto e alegre, mas ainda assim doído, pois a parte inferior de seus lábios se dilatava, fazendo sangrar a ferida. Aí ele se aproximava do médium, que lhe dava uma pequena ajuda em dinheiro. Para se despedir, ele se jogava todo por inteiro, em cima do Chico! Falava quase dentro do nariz do Chico e eu nunca o vi ter aquele recuo instintivo como eu tivera tantas vezes. O Chico beijavalhe a mão e a face e ele retribuía, beijando os dois lados da face do Chico, onde ficavam manchas de sangue deixadas pela ferida aberta em seus lábios. Nunca vi o Chico se limpar na presença dele nem depois que ele se tivesse ido.
Não saberia dizer quantas vezes pensei em levar um presente àquele pobre irmão- uma camisa... um par de sapatos... uma blusa. Infelizmente, fui adiando e o tempo passando. Acabei por não lhe levar nada. Lembrome disso com tristeza e as palavras do apóstolo Paulo se fazem mais fortes nos recessos de minha alma: " Façamos o bem, enquanto temos tempo ". De repente, ficou tarde demais. Jorge desencarnou numa madrugada fria, completamente só em seu quarto, esquecido do mundo, esquecido de todos, mas não de Deus. Contou-me o Chico que foi este nosso irmão de pele escura, cabelos enrolados, ferida nos lábios, pés rachados e mau cheiro que, ao desencarnar, Jesus veio pessoalmente buscar. Entrou naquele quarto de terra batida, retirou Jorge do corpo magro e sofrido, aconchegou-o de encontro ao peito e voou com ele para o espaço, como se carregasse o mais querido dos seus irmãos!
Adelino da Silveira