My first Magazine Revista Sarau Subúrbio ed 02 | Page 48

Á G U A D E M O R I N G A O subúrbio é assim! Traz na sua identidade uma gama de objetos, símbolos, traços e marcas que o tornam original, atemporal e, de certa forma, mítico. Um desses traços de identidade da vida simples do subúrbio, fui buscar nas reminiscências da minha infância. A infância de moleque pobre do subúrbio era a do dia que não podia terminar. Era a pelada no campo improvisado de terra batida, irregular por natureza, que mantinha sempre uma pedra que encontrava o dedo maior do pé, apesar da alegria do gol comemorado. Era a infância de fazer e soltar pipa, do triângulo de bola de gude que testava a nossa mira, o peão que insistia em desfazer a fieira três ou quatro vezes antes de ser lançado e girar sobre a terra e parar na palma da mão. Infância suburbana que ousava nos garantir que a velocidade com que corríamos no pique-bandeira ia à contramão do dia que deveria demorar a terminar. Todas as subidas em árvores, corridas dos cachorros e demais brincadeiras e aventuras não podiam ficar restritas à exatidão dos ponteiros do relógio. Ou seja, nós fazíamos o nosso próprio tempo, pelo menos achávamos que tínhamos tal poder. Essa pretensa cristalização do tempo era brusca e imperativamente interrompida por uma frase que vinha de longe, mas era inconfundível: “passa pra dentro moleque”! A garantia de que o ultimato seria cumprido, surgia como extensão da mão: uma correia ou uma vara de goiabeira. De súbito, a desafiar a velocidade da luz, estávamos eu e o restante da molecada atravessando cada qual a porta da frente de sua casa. Ofegante, parte pela correria desembestada, parte pelo medo da possível surra, só diminuía os meus batimentos cardíacos depois de engolir, através de uma caneca de alumínio barato cheia até a borda, a água fresca retirada de uma velha moringa de barro, que ficava sempre no canto de uma pequena mesa de madeira na cozinha. Tudo que escrevi, confesso, fiz um esforço para lembrar, exceto da imagem daquela moringa de barro cuja água, contrariando as leis da química, tinha gosto! Gosto de infância que se reteve no tempo, mas que continua ainda muito presente na memória.