Graças a mim o goleiro me agarrou. Eu calculei mal a trajetória na volta e, alterando os planos dele, não consegui dar a impulsão que eu pretendia para encobrir o goleiro quando bati no chão, daí ele me alcançou e segurou. Na segunda jogada ele enganou a nós três: eu, o goleiro, o beque e acho que, também, a todo mundo que assistia ao jogo. Dando um corta luz ele fingiu que ia me pegar, mas me deixou seguir e deu a volta no goleiro, como no drible da vaca, mas fazendo ele a trajetória como se fosse uma de nós. Com o goleiro, que pensou que ele tinha me conduzido, e o beque voltando desesperados para impedir o gol, ele me chutou tirando mais do beque. A verdade é que fiquei com medo de me chocar contra a trave aí tendenciosamente me inclinei para a esquerda e sai pela linha de fundo. Até hoje eu ainda costumo sonhar muito com estes lances, mas só que convertidos em gol.
Benê, notadamente a mais nova da turma, que escutara a todo o relato, mais atenta do que todas ali presentes, dando um tom de consolo a uma voz lamentosa, refutou:
— Madame a senhora não sabe o que é fracasso. Imagine só: uma aprazível tarde de domingo, o estádio Mário Filho, maior estádio de futebol do planeta, lotado pelas duas maiores torcidas do Rio e dia de decisão do campeonato carioca. Neste momento ela fez uma breve pausa e elevou o olhar rapidamente na direção da madame Semitri, para medir o efeito que suas palavras provocara nela. Depois fez um contato visual com cada uma das outras.
Madame permanecia garbosa e majestosa, era a única colocada em uma pequena cadeira de espaldar alto, parecia uma rainha olhando a todas suas súditas de um plano mais alto, mas prestava atenção sem esboçar, no austero semblante, reação de natureza alguma. As outras duas companheiras retribuíram com animadores olhares de incentivo. Benê, então prosseguiu animada:
— Eu, de braço dado com o juiz, entro garbosa em campo para a minha avant premier. O juiz, a autoridade máxima em campo, examinando se tudo transcorria de acordo com o protocolo, me segura o tempo todo, demonstrando quem seria a bola do jogo. Tudo pronto para o início da peleja e começa o meu drama. O árbitro me segura com as duas mãos e me aperta, eu toda prosa, rio de prazer, mas ele faz uns trejeitos de quem não parece nada satisfeito e eu fico apreensiva. Com ar de indecisão ele me entrega ao primeiro auxiliar, que também me aperta, e me passa ao segundo auxiliar e este, depois, aos capitães de Vasco e Flamengo. Passei de mão em mão, entre alguns daqueles que nos usam e tratam com fino trato, e ninguém pareceu gostar da minha forma e sou desprezada.
Sentindo-me completamente vazia por dentro, retornei murcha para o vestiário consolada por um amável gandula, que se desdobrou pacientemente tentando reanimar-me e colocar-me mais uma vez em condição de jogo, mas o desalento já havia me tomado em seus braços. Vivi um triste e longo período de abandono e esquecimento, jogada num depósito por falta de especialistas para cuidar de mim. Um dia apareceu, por lá, um político pedindo uma bola oficial para um jogo beneficente, que organizara com fins eleitoreiro, e foi a minha redenção.