My first Magazine A Luta Bebe Cerveja - Ana Sens | Page 55
A LUTA BEBE CERVEJA
chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi
lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos
gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio
intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que
jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que
frequentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente,
ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes,
uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a
gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente
gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima
de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente frequenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente
e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente
ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem
bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam cinquenta por cento o preço de tudo (eles sacam que
nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por
aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão,
trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um
som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já
disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A cada dia está mais
difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a
Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir
o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda
que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne de sol com macaxeira
(que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais,
meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse
termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).
– Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?
Crônica publicada em 26/12/2008 no jornal O Estado de São Paulo.
48