Minha primeira publicação Exposição Negros Claros — Bruno da Cunha | Page 11
quisa poética e que aparece através da obra é, em certo sentido, sagrada.
É algo muito próximo da imagem de uma fonte qualquer que anima o mundo
e que também o ordena. Algo próximo da essência da natureza na sua totalida-
de. As aproximações que as obras produzem a estas dimensões interiores das
coisas, manifestam-se por via das suas várias dimensões materiais e de esca-
la. Por um lado, através do negro espesso da borracha sobre a madeira clara,
cujos contrastes cromático e táctil acentuam a experiência da descoberta, mas
também o gesto do fazer, a intenção de elaborar, de concretizar a obra como a
soma do (re)conhecimento, como a apresentação de algo e ainda - talvez mes-
mo acima de tudo - como a investigação sobre os limites, da cor e da matéria
em relação entre si: adição e suporte, espaço e tempo, mundo e ordem, terreno
e sagrado, e sobre os movimentos possíveis no seio dessas relações. Por outro
lado, o jogo dos planos, também negros, dobrando-se ou desdobrando-se em
ritmos variados, onde cada visão determina uma quebra, única, exata, mas dei-
xando, de algum modo, também indefinidas as linhas de início e de fim da cada
peça. Porque é isso também o que está em causa: a amplificação dos sentidos,
da significação, dos limites. Transpor, transgredir, abrir pela matéria são, em
síntese, as intenções formais mais essenciais ao trabalho deste artista. Outra
dimensão ainda, determinante para a relação que nós estabelecemos com as
obras, e também de substancial importância para a compreensão da exposição
e do projeto artístico de Cunha, é a inferência que elas exercem sobre o espa-
ço e que molda a experiência que temos dele. O tamanho das esculturas e das
esculturas-pinturas tem uma relação direta com o espaço público, sendo ela-
boradas a partir de uma escala exterior que, ao ser transportada para dentro do
espaço da exposição aí provoca alterações determinantes - para além do preto,
claro, como massa e presença que se impõe e que acentua essas alterações,
mesmo que a partir daquela leveza elementar que, pelo esforço do autor, tam-
bém o caracteriza. Por via desta imposição, passamos a ter com as obras uma
relação que ultrapassa os termos da contemplação e que nos atira como que
para dentro de uma obra maior, para um espaço entre as obras. Somos, com
efeito, empurrados para essa esfera de tempo, de atenção, somos convidados a
escutar, a circundar, a sentir, a ver os desvios, outras regras, outros limites.
Ainda que o enigma do silêncio, que é também o enigma do sagrado e do
poético, e dos desvios e das leis renovadas, que atravessa certamente todo
o espaço expositivo, através das obras, nos possa lançar numa sensação de
vazio iminente, a sensualidade e a elegância do trabalho de Bruno da Cunha,
nessa depuração laboriosa a que se dedica continuadamente e que remetem as
obras ao gesto mínimo, com recurso a materiais tão simples como a madeira,
a borracha ou o alumínio, cujas próprias características físicas carregam a obra
de curiosidades plásticas, creio que facilmente criamos afinidade com as obras;
somos até, de certo modo, impelidos para elas. Embora com estranheza, há em
nós uma certa disposição para a profundidade, uma curiosidade natural pelo
mistério. E a catarse do mistério, que ele próprio investiga, é talvez a manifesta-
ção mais essencial da obra do artista.
Maria Joana Vilela