SUSSURROS DA TERRA
Por Pedro de Pina Viana
L
embro-me que por um instan-
te percebi: fazia um dia bonito. O
céu em um azul grave, ameaçan-
do tempestade, a plantação num verde
forte, devolvendo o cumprimento, e eu,
sozinho, naquela imensidão do canavial,
à espreita, segurando a carabina que um
dia foi de meu pai. Empunhava ela em
meu ombro, preparada que estava para
romper clarão na sombra em que me
embrenhava.
tava. Queriam era provocar fraqueza,
mostrar tamanho do bando, precipitar
atitude. Disso eu ria, desdenhoso, cá, den-
tro de mim. Espreitava escondido, pacien-
te, com os olhos iguais duas jabuticabas,
bem abertos. Suor caía na fronte, de ter
que limpar com o punho para não atra-
palhar a observação. Medo, nunca tive
em vida, não era da morte que iria fugir.
Quem vê falando assim, até pensa
que é derrotismo meu. De quem entrega
As folhas de cana roçavam carícias a algibeira antes de desembainhar o fer-
em meu rosto, em meus braços, enquanto ro. Mas se engana. Já vi muita coisa nes-
eu andava devagar pelo mato. Meu peito se mundo, já lutei por demais. E quando
se destrambelhava; batia frouxo, rápido, chega a hora de partir, dá pra saber do
carecia até de segurar. Só que, nessa vida, profundo da gente, cada pedacinho do
aprendi com custo que coração não tem corpo avisa. E isso, não olhei de relan-
arreio, e se com cavalo de teima a gente ce, enfrentei de frente. É que o medo da
esbraveja, torce de um lado, torce do ou- morte paralisa a vida.
tro até aprumar rumo, com o coração é
De Deus, pouco conheço, nun-
diferente, só se amansa com o deixar ser,
ca
prestei
prece falada. Crente não fui,
respirando, profundo.
também nunca desacreditei. Reverência
As vozes já se aproximavam, às só prestei em silêncio, em respeito dele
dezenas, espaçadas. Engraçado o que se existir mesmo. Vi gente simples gastar
pensa perto da morte. O cheiro dos pés as economias com reza, pra garantir um
de cana, o úmido agarrado no corpo, me pedaço de céu. Jagunço, com medo de in-
fazia lembrar Clarice, nos anos atrás, ferno, que corria do bom combate. Padre
nua, pela primeira vez, a pele morena mijando no chão na hora de morrer. Mas,
no meio do canavial. Parecia até pintura. aqui, no meu profundo, guardo receio
Eu, que já tinha enfrentado touro bravo, e não, de julgamento nenhum. Vivi como
nunca arredava pra homem nenhum, na- pude, fiz o que tinha que fazer. Se Deus
quele dia, senti como se o estômago esti- existir, o olharei tranquilo; se não, hoje
vesse cheio de mariposa. Tempos depois, acaba Francisco da Silva Ferreira, no tem-
mais uma vez, encontrava-me na mesma po em que era pra ser.
plantação. Marcado pela memória dela, o
O cerco devagar foi se firmando,
vestido vermelho largado no chão. Tem
farejavam
meus rastros. Mas careciam de
saudade que faz companhia pra solidão
saber de exato onde eu estava, tateavam
da gente.
pe