O OVO
Por Mariana Barroso
P
ermita-me politizar, o Ovo.
Se, do contrário, se esfacela caoti-
camente toda a casca, o resultado final
é uma superfície irregular, abundante de
buracos, às vezes até mesmo é possível
encontrar o amarelo da gema, aquele nú-
cleo guardado para a verdadeira refeição.
O trabalho torna-se manchado, tomado
pelo jeito xucro daquela intervenção.
Cabe, portanto, questionar-se dos
objetivos.
“Desejo o ovo perfeito, do
brilho, a enfeitar um prato que lhe serve
de cama, de superfície.”.
Não! Cobiço mesmo é o processo
que desfaz, que toca com mãos firmes
todo o ovo, estando ele, ao final, aberto o
suficiente para que se acesse o núcleo, se
toque, por que não, as entranhas de todos:
as mãos e os dedos sujos do cirurgião, a
superfície
esburacada
daquela extensão branca,
o vistoso amarelo da gema
todo a mostra.
Permita-me: o Ovo. O ovo
não é apenas branco e luzidio.
Pode ser caipira, tendo então co-
loração mais escura, pode ainda
vir com o carimbo de orgânico
(sem significado). Não precisa
ser mascarado na água, para que
ao final saia lustroso e pronto a
ser exibido. Pode, deve, ser be-
suntado no óleo de coco, frito,
mexido, revirado, temperado
das mais diversas ervas, das
mais contraditórias e inusitadas
preferências; pode ser metido na
água quente em turbilhão, tingi-
da de vinagre e vinho branco. A
quem interessa uma remoção
bela e cirúrgica da mem-
brana? A quem interessa a
lisa superfície branca e bri-
lhosa? Não sei. A mim, in-
teressa-me os buracos caóticos
do desassossego que, por fim,
revelam o núcleo, que poderá
se mostrar mole ou duro; mistu-
rando-o a tudo que há de mais di-
verso e complexo no mundo das
comidas.
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Cozido o ovo, descascar ou
penetrar aquela capa dura que pro-
tege a gema é empreitada que traga. Para
que ao final do processo se tenha às mãos
uma perfeita forma branca, luzidia, pron-
ta a receber os temperos, é necessário,
sobretudo, saber quebrar a parte dura.
Àquele que toma um garfo ou objeto
qualquer, e dana a esmigalhar o ovo, es-
perando que ao final a casca se desfaça
facilmente, espera a frustração. Esta su-
perfície reluzente advém tão somente de
processo cirúrgico. Quebrando-se cerca
de um terço da casca, a membrana que
protege o conteúdo se desfaz; o resto
intacto e duro do invólucro, como que
inesperadamente, desarruma-se mais fa-
cilmente, dando inclusive ao pobre cirur-
gião pequena sensação de prazer; o dever
está brilhantemente cumprido, com a
mínima agressão.