OS GAROTOS DE OFÉLIA
Por Ícaro Adônis de Oliveira
A
narrativa conta que dona Ofé-
lia suspeitou, por acaso, logo no
primeiro dia da gravidez, que es-
perava gêmeos. Andava ela pelas ruas
da cidade durante o alvorecer, e decidiu
tomar café na padaria. Falou à moça da
cesta que queria dois pães, quentinhos se
possível e levemente queimados. A res-
posta foi seca: “senhora, você está grávi-
da, não está?”, ao que um desconhecido
logo atrás na fila rebateu: “que beleza, e
serão gêmeos!”. Não havia motivo para
desconfianças quanto a real possibilidade
do acontecimento; no entanto, dona Ofé-
lia não compreendia o porquê daqueles
mensageiros, tampouco imaginava que,
àquela altura, um bebê, ou dois, poderia
estar a caminho.
Após alguns meses, veio a confir-
mação. Eram gêmeos, dois meninos. Se o
leitor se pergunta do pai ou de qualquer
família próxima, é clara a resposta: não
possuem papel na história que relatamos.
Ofélia, Jerônimo e Oraci formam, por
hora e até o fim, os personagens e a famí-
lia que existiu. Dona Ofélia, de quem, é
verdade, pouco sabemos até o momento,
sempre foi entregue a práticas místicas,
exotéricas, de modo que, ainda perto dos
treze anos dos garotos, a vizinhança não
compreendia muito bem a educação que
recebiam. Não frequentavam a escola
normalmente, havia um entra-e-sai de
homens e mulheres durante as manhãs,
o que os curiosos passaram a ver como
tutores. No entanto, perto dos doze, quan-
do os irmãos começaram a ir à padaria
sozinhos, conta-se que, nas mais inusi-
tadas situações, encontravam as marcas
dos garotos de Ofélia.
que a informação do menino era verossí-
mil: daquele dia em diante era lei: o pão
deveria ser feito com farinha de tamba-
qui. Pleiteou Jerônimo que tão rico em
nutrientes era o alimento que o governo
determinou que, dali uma semana, a tal
farinha deveria ser a matéria prima por
excelência dos padeiros. Aquele que in-
fringisse a determinação seria punido.
Simples e desinformado, o homem danou
a calcular o custo daquela empreitada e
demorou um mês para compreender que
se tratava de uma embustice. Oraci, já na
mocidade, fez-se de poeta e de apaixona-
do por uma jovem professora da escola
da vizinhança, escrevendo-lhe poemas
por demais lúbricos...
Encanta-me sua crista da tíbia,
sua forma alongada serve-me de livro,
quando ao joelho encontro o pano,
ardo na vontade de ascender ao fim da
estória.
Embruxa-me este tabuleiro da tela,
quando meus olhos nela jogam xadrez,
meu cavalo roda em Ls, perfura o tecido,
que alívio: encontrar a Rainha!
... apenas para observá-la a sua espera
por dias na estação central da cidade.
Não se revelando, e concluída a decepção
da moça, Oraci tornava a enviar versos,
justificando-se, reavivando os desejos da
professora.
Enfrentada a infância e a juventu-
de, agora vivendo a maturidade, os dois
rapazes adquiriram, cada um, seus inte-
resses. Jerônimo cresceu aficionado por
teorias da conspiração, mesmo não cren-
do em nenhuma delas; Oraci, por verda-
des absolutas. Autodidatas: o primeiro
Jerônimo, mais entregue ao espí- ganhava seus rendimentos pintando e
rito resoluto, certo dia teimou tanto com expondo em pequenas galerias; o segun-
o padeiro que este ficou convencido de do, garantia a vida por meio de aulas par-
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