A LENDA DE PÉRICLES, PESCADOR
O anzol sequer chegou a bater na água quando Péricles sentiu a linha puxar. Firmou as mãos à vara, tentando dar sentido à súbita mordida que dera início ao que julgava ser mais um cabo-de-guerra pela vida do animal.
O instinto tomou a dianteira naquilo que aprendeu a fazer havia mais de trinta anos, quando ainda menino. Era um penar de paciência e técnica. Na verdade, era mais jeito do que técnica, porque a técnica impõe uma previsibilidade que a pesca não contempla – a pesca é sobretudo improviso. Cada isca chama um peixe novo, que briga pela própria vida à sua maneira. Nisso, aliás, estava a diferença entre os homens e os bichos, lhe ensinara seu pai: o homem aprende e ensina, enquanto o bicho, geração após geração, cai sempre nas mesmas armadilhas. No final, todo mundo morre, mas parece que o homem morre menos pela mesma emboscada...
Péricles quase foi à água pela tensão imposta pelo seu desafiante. Seu instinto parecia não ser suficiente, equilibrou-se como pôde com o corpo – uma vez que os braços estavam comprometidos em não largar a vítima fisgada. Como de costume, pôs-se de pé para conseguir uma vantagem estratégica que compensasse a imobilidade do seu bote no rio, contra a imensidão do mundo subaquático.
Com o chapéu tombado às costas, preso por um cordão que lhe marcava o pescoço, e com o sol da tarde que lhe batia de frente, Péricles demorou a entender o movimento que estava sendo obrigado a fazer. Não entendia o ritmo ditado, a linha parecia subir, arqueando a vara a um ângulo inédito para o qual não tinha sido
A LENDA DE PÉRICLES, PESCADOR
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Por Luiz Fagundes
projetada. A ameaça de rompimento era real. Mesmo que não percebesse prontamente as consequências daquele embate, Péricles não tardou a suspeitar que aquilo não era um peixe qualquer.
( Óbvio: foi tudo tão rápido, entre levantar-se, o sol na cara e a força do bicho; os primeiros instantes foram apenas de reação.)
Quando suas pupilas se acomodaram e seus braços se fixaram a meia altura, uma visão fantasiosa se apresentou àquele pescador que tantas mentiras já tinha ouvido, e tantas mais já tinha contado.
A linha esticada no ar, longe da água, se confundia com os raios de luz. Numa cena surrealista, que negava tudo o que Péricles sabia das leis da natureza, parecia-lhe que Deus havia pinçado o anzol e o puxava para o céu. E das infinitas dúvidas que lhe surgiram, a única certeza que Péricles assumiu foi a de que não havia peixe no final de sua linha.
O certo, talvez, àquela altura, teria sido cortar a linha, agarrar o remo e voltar à terra firme. Mas o homem, que aprende e ensina, precisa sofrer com o erro para diferenciar-se dos bichos – e Péricles não temia a possibilidade de se fazer mártir do conhecimento, pelo bem da humanidade. Afinal, pensou, a isca que Deus lança aos homens é sempre a novidade, capturando-nos não pela vontade de comer, mas pela fome por saber.
Num duelo de capa e espada que opunha Péricles às forças ocultas que o desafiavam, a vara de pescar fazia-se florete ao riscar o vazio entre o verde da água e o azul do céu. Difícil seria tentar imaginar quanto tempo durou a queda