SANGUE ENTRE AS PERNAS
Por Bruna Aguiar
D
eceparam-me. Permaneci em pé.
Imóvel, senti ao longo das vérte-
bras o caminho por onde haveria
de rolar minha cabeça. Fiz de tudo para
equilibrá-la no dilacerado pescoço que
me restava. Era tanto sangue, que se mis-
turava com tanto suor, que foi meu corpo,
meu torso, quem tateou minha condição.
Por entre minhas pernas escorria aquele
cheiro de ferro que alarmava meus senti-
dos. Era tanto sangue, que se misturava
com tanto suor...
nelas que encontrei meu consolo quando
por brutos homens fui arrebentada e es-
tuprada pela enésima vez.
Trágico consolo que a vida me
oferece, pois se Deus impôs o tempo aos
homens, o homem se impôs à mulher.
Meu corpo é consumido pela consciência
de que quando sou assaltada só me resta
esperar – é que só o tempo que me res-
gatará.
E esperei. Esperei o sangue estan-
car,
defendi-me
como pude, equilibrando
Não adiantava suplicar. Aquele
dardo banhado em sangue e sêmen – as ideias para que não tombassem por
veneno contundente – mata, mas fecun- terra. A meus agressores, quis dizer:
da. Castigo ou penitência, fui violentada
-Podem vir com suas lanças, es-
pela força da natureza que agride sem
padas e porretes; a alfinetada da agulha
titubear. Era tanto sangue, que se mistu-
do destino feminino fere-me desde meus
rava com tanto suor, que aquela violação
treze anos! Acostumei-me, há muito,
parecia meus treze anos, parecia minha
a olhar no olho compartilhado das três
primeira menstruação, aquela primeira
megeras da fortuna, que pisca, todo mês,
vez em que, sem pênis, a natureza me es-
com meu penar.
tuprou com seu veneno hormonal injeta-
do pelo simples passar do tempo.
Concentrava-me naquelas semen-
tes antropoquímicas que buscam se per-
Porque no final das contas, a pri-
petuar no útero. O gozo alheio condena
meira mácula, o primeiro rasgo forçado
toda mulher que traz entre as pernas os
contra nossa pureza batismal, é o golpe
campos úberes da humanidade.
indiscriminado que as agulhas do relógio
rendem ao nosso corpo. E lá, toda vez, é
A vida que ameaçava nascer em
tanto sangue, que se mistura com tanto mim, e não a morte que eu desejei; mas a
suor...
vida que podia haver em mim – a vida – a
possibilidade de vida: trucidava-me. Pois
Perdemos a cabeça e renascemos
a arma biológica que mais mata é a que
como castas virgens púberes, ou como fê-
mais fecunda.
meas avulsas violadas e largadas, depen-
dendo de quem nos estupra – tempo ou
Minha cabeça não ficaria presa
homem. A fertilidade possível, a possibi- a meu corpo. Como quando aflorei à
lidade fértil, a transformação do corpo, a primavera da vida, minha cabeça não se
transformação da alma, somos estupra- prendia a meu corpo e saía a conhecer os
das à terna idade e reestupradas a cada prazeres da carne; agora, outra vez, mi-
coito forçado. As horas, a idade, a natu- nha cabeça não ficaria presa a meu cor-
reza são as primeiras agressoras que nos po, confrontada com as perturbações da
violam, e talvez as mais hediondas. Foi carne a que fui submetida por violência
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