Madame Eva Mme Eva quarto numero | Page 18

SANGUE ENTRE AS PERNAS Por Bruna Aguiar D eceparam-me. Permaneci em pé. Imóvel, senti ao longo das vérte- bras o caminho por onde haveria de rolar minha cabeça. Fiz de tudo para equilibrá-la no dilacerado pescoço que me restava. Era tanto sangue, que se mis- turava com tanto suor, que foi meu corpo, meu torso, quem tateou minha condição. Por entre minhas pernas escorria aquele cheiro de ferro que alarmava meus senti- dos. Era tanto sangue, que se misturava com tanto suor... nelas que encontrei meu consolo quando por brutos homens fui arrebentada e es- tuprada pela enésima vez. Trágico consolo que a vida me oferece, pois se Deus impôs o tempo aos homens, o homem se impôs à mulher. Meu corpo é consumido pela consciência de que quando sou assaltada só me resta esperar – é que só o tempo que me res- gatará. E esperei. Esperei o sangue estan- car, defendi-me como pude, equilibrando Não adiantava suplicar. Aquele dardo banhado em sangue e sêmen – as ideias para que não tombassem por veneno contundente – mata, mas fecun- terra. A meus agressores, quis dizer: da. Castigo ou penitência, fui violentada -Podem vir com suas lanças, es- pela força da natureza que agride sem padas e porretes; a alfinetada da agulha titubear. Era tanto sangue, que se mistu- do destino feminino fere-me desde meus rava com tanto suor, que aquela violação treze anos! Acostumei-me, há muito, parecia meus treze anos, parecia minha a olhar no olho compartilhado das três primeira menstruação, aquela primeira megeras da fortuna, que pisca, todo mês, vez em que, sem pênis, a natureza me es- com meu penar. tuprou com seu veneno hormonal injeta- do pelo simples passar do tempo. Concentrava-me naquelas semen- tes antropoquímicas que buscam se per- Porque no final das contas, a pri- petuar no útero. O gozo alheio condena meira mácula, o primeiro rasgo forçado toda mulher que traz entre as pernas os contra nossa pureza batismal, é o golpe campos úberes da humanidade. indiscriminado que as agulhas do relógio rendem ao nosso corpo. E lá, toda vez, é A vida que ameaçava nascer em tanto sangue, que se mistura com tanto mim, e não a morte que eu desejei; mas a suor... vida que podia haver em mim – a vida – a possibilidade de vida: trucidava-me. Pois Perdemos a cabeça e renascemos a arma biológica que mais mata é a que como castas virgens púberes, ou como fê- mais fecunda. meas avulsas violadas e largadas, depen- dendo de quem nos estupra – tempo ou Minha cabeça não ficaria presa homem. A fertilidade possível, a possibi- a meu corpo. Como quando aflorei à lidade fértil, a transformação do corpo, a primavera da vida, minha cabeça não se transformação da alma, somos estupra- prendia a meu corpo e saía a conhecer os das à terna idade e reestupradas a cada prazeres da carne; agora, outra vez, mi- coito forçado. As horas, a idade, a natu- nha cabeça não ficaria presa a meu cor- reza são as primeiras agressoras que nos po, confrontada com as perturbações da violam, e talvez as mais hediondas. Foi carne a que fui submetida por violência 16