Janela do Calhau nº 3 Janela do Calhau nº 3 | Page 8
janela do calhau
janela do calhau
Entrevista a José Marreiros
Janela do Calhau – Gostaríamos de saber
sobre as vivências de antigamente. Como é
que era o bairro? O que é que se fazia no
bairro?
sonhei ter um triciclo. Havia um ferro velho
na Estrada de Benfica e o meu pai um dia foi
comprar um triciclo em segunda mão, pintou
-o, foi a maior festa, toda a gente andava no
meu triciclo, aqui no Calhau. Eram tempos
José Marreiros – Será talvez um choque
muito difíceis.
aquilo que eu vá dizer, comparativamente
com o que acontece hoje, pode ser um cho- Andei a estudar também, mas desisti por
que muito grande para a juventude e até, opção própria. Felizmente não foi por necestalvez, para alguns que já não são jovens, sidade.
porque as necessidades eram diferentes.
Janela do Calhau – E a habitação? Como é
Não se compara o que era preciso. Basta
que era a habitação naquela altura? Como é
lembrar, por exemplo, que quem fosse naque eram as ruas?
quela altura beber uma bica ao Jardim Zoológico, já era considerado rico. Estão a ver a José Marreiros – O desenho das ruas era já o
diferença que existe para os dias de hoje? actual. Eu morava aqui, onde é hoje a associUm café custava 12 tostões. Ora, nessa altu- ação. Aqui dentro do pátio existia uma capora, nem toda a gente lá podia ir abaixo. eira de galinhas e outra de coelhos, que
Quem ia já era considerado rico, o que não eram de toda a gente aqui do pátio. Vivíaera verdade. O São Domingos, para a minha mos aqui 8 famílias, nas casas da Mariana, e
geração, já era um bocadinho pequeno, era no meio havia as referidas capoeiras.
limitado, havia muito jogo e nós já queríaJanela do Calhau – As capoeiras eram do
mos outras coisas. Já víamos cinema, já íatipo comunitário, eram de todos?
mos ver televisão ao São Domingos, pagávamos 5 tostões para ver televisão. A sala esta- José Marreiros – Cada um tinha a sua capova cheia e o director de serviço, chateava-se eira, mas o conjunto era de todos. Estive
nesta casa até aos 10 anos, tinha uma vantae punha-nos na rua.
gem, não precisava de chave porque a minha
Nasci nessa fase, era tudo muito rígido, por
mãe quando abria a minha cama, encostavaexemplo, para ir ao baile não podia ir porque
a à porta, ninguém entrava.
tinha só 13 anos, ficava cá fora, sentado à
entrada da sede, ou quando vinha um con- Fiz a 4ª classe. O meu pai prometeu-me que
junto, num táxi com os instrumentos para se ficasse bem na 4ª classe me dava uma
tocar e nós só entrávamos se ajudasse-mos a telefonia.
carregar os instrumentos para o interior da
Depois mudei de casa, para outra aqui em
sede e tinha direito a ficar nas cadeiras lá
frente, onde vivi até casar. Esta casa aqui era
atrás ou só entrava na segunda parte e não
muito pequena, aquela já era “bastante maipodia sair dali. Havia uma grande diferença
or”, tinha um quarto e uma cozinha.
comparativamente com os dias de hoje,
também era exagerado. Agora, talvez seja Janela do Calhau – Já era, na altura, muito
um pouco liberal de mais, mas naquela altu- bom, não era?
ra um exagero. Foi assim que fui criado e
José Marreiros – A minha mãe já dormia
cresci aqui no bairro. Havia sempre necessinum lado e eu dormia noutro. Depois veio a
dades, as necessidades sempre foram enorminha tia, ficámos novamente com pouco
mes.
espaço.
Pelo Natal, as grandes festas, era ali o engeEu sou do tempo, em que íamos à missa do
nheiro que as fazia, que nos dava os brinqueGalo, punha-mos um fogareiro a petróleo,
dos, tínhamos que nos inscrever ali no engeno chão da cozinha, e deixava-mos a fritar as
nheiro e lá em cima no Palácio. A minha mãe
filhoses. Ficava em cheiro insuportável a
e o meu pai trabalhavam, por isso o engeazeite. Toda a gente ia à missa do Galo e
nheiro já não me dava a mim. Toda a vida
quando voltava comia as filhoses. Era assim,
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Entrevista a José Marreiros
era à pobre.
Esses bocadinhos nunca me esquecem. Depois eram os amigos, eramos obrigados a ser
amigos porque eramos todos iguais. Nessa
altura não havia dinheiro mas as pessoas
eram muito mais ligadas. Se te fizessem mal
a ti eu ia lá porque era teu amigo. Hoje cada
um tem inveja do outro.
Sempre houve uma grande rivalidade entre
o Calhau e “as terras”. Aqui era sempre a
elite, do outro lado estavam os mais pobres.,
porque do outro lado a habitação era um
pouco mais rudimentar. Os jovens da altura
nunca sentiram isso. Aqui era rudimentar na
mesma, ou pior. Eu nuca tive casa de banho.
Havia uma pia à entrada do pátio, onde
eram deitados os dejectos da cada casa. Eu
ia à quinta-feira, ao balneário da Serafina,
tomar banho e ao Sábado para depois ir ao
baile.
Depois fui para a tropa, fui para o ultramar.
Janela do Calhau – Depois casas-te e tiveste
que sair.
José Marreiros – Casei e tive que sair. Não
havia condições. Não cabia lá em casa. Nem
havia casas disponíveis, se quisesse para
ficar. Naquela altura, casava-se e ia-se embora, porque não existiam condições. Se eu
já não cabia naquela casa, com os meus pais
e a minha tia, como é que caberia mais a
minha mulher. Não era possível.
A falta de condições era tal que tive que
comprar uma lona, para tapar o telhado,
porque a certa altura começou a chover lá
dentro como se fosse na rua.
Janela do Calhau – Hoje já se ultrapassaram
essas situações.
José Marreiros – Sim, felizmente que sim,
essas situações estão ultrapassadas.
Eu estive em Angola e W&wV