Inominável Nº 2 | Page 22

Só mais um abraço (...), relata alguns anos da vida de uma família que, por força de um jogo de cartas que terminou mal, se vê obrigada a partir para um outro continente, um mundo diferente de tudo o que tinham conhecido até então. A narrativa é feita através dos olhos de Lurdes - embora não seja contada na primeira pessoa - o que nos permite uma observação simples, mas atenta aos pormenores, como quase só as crianças conseguem fazer. Á volta dela, e do que vai entendendo à medida que cresce, enredam-se outras vidas que a tocam, principalmente a de Maria Inácia, a mãe, que apesar da loucura em que acaba por enrolar os seus dias, é uma âncora resistente às tormentas e, estranhamente, mantem Lurdes lúcida e objectiva na descrição do que a rodeia. É um livro que quase necessita de ser lido em voz alta, pausadamente, como quando queremos contar uma história de encantar.

Maria do Rosário volta a molhar a garganta em mais um poucochinho daquela infusão de ervas variadas a que tinha adicionado uma raspa de gengibre fresco. A brisa de há bocado sopra mais intensa, mas nada que se assemelhe ao que se deu no dia do enterro.

Foi no momento mesmo de o caixão descer à cova. Maria do Rosário lembra-se de ter reparado como a terra era fofa e castanha: terra boa para sementeira, tinha pensado, ia o féretro descendo, e ela nem um arrepio, um desgosto, um pensamento de gratidão ou outro que a fizesse ligada àquele momento; nem uma lágrima que lhe escorresse. De longe, chegava o ruído dos carros, mas ali era o silêncio mal cortado pelo respirar de cada um e pelo roçagar das cordas na madeira do caixão que a agência funerária escolhera com gravações prateadas; ela tinha dito: deixo ao vosso critério, depois de terem conferenciado sobre preços.

Foi no momento de se ouvir o baque surdo erguendo-se lá do fundo do buraco. Nesse momento mesmo, o ar rebentou num vento a soprar de norte, intenso e fresco, quase gelado no decote que lhe deixava o peito descoberto apesar do casaquinho.

Resmalharam as folhas dos ciprestes e pelo chão ergueram-se folhas secas e cacos leves; e as gravatas de alguns presentes foram resguardadas junto ao peito por mãos apressadas, e esvoaçaram as écharpes de duas senhoras que Maria do Rosário não conhecia senão de vista.

Foi nesse momento que a mão de Clotilde se fez mais pesada no seu braço, que a outra sabia que aquele vento, inopinado, era um sinal dos deuses.

Não o saberá nunca Maria do Rosário a beber mais um gole de chá já morno. E no entanto, ela desvia os olhos e ergue-os lá para cima numa busca muda. Mas lá em cima é apenas o céu que escurece no final do dia: nem alma que tivesse subido aos céus com a nortada, nem estrelinha a piscar-lhe a novidade da chegada. Nada mais que um céu de fim de tarde e a brisa que faz tremelicar o pano vermelho do guarda-sol e arrefece o chá.

(Janeiro 2016)

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Maria Alfacinha

(17 Dez 2015)

Só mais um abraço

Apresentação na Ler Devagar, em Lisboa