Inominável Nº 2 | Page 21

Maria do Rosário está só no mundo desde quinta-feira e hoje é uma sexta-feira solarenga do mesmo Maio, na semana seguinte.

Ela que se recosta de olhos semicerrados a saber que o chá arrefece.

Do lado do mar, sopra agora uma aragem ligeira e o pano do guarda-sol balança, levezinho, sobretudo o tecido que se lhe dependura em toda a volta qual enfeite.

É um guarda-sol vermelho, pequenino e novo.

Maria do Rosário adquiriu-o na tarde do enterro.

Que ela, depois, fora caminhando sem o braço da Clotilde a deixar-lhe suores naquele de-braço-dado que a outra tinha insistido durante a missa de corpo presente e no cemitério.

Maria do Rosário disse-lhe: Clotilde, preciso de ficar sozinha. Já estava a cova quase tapada e ela iria ainda despedir-se dos outros acompanhantes. Tinham ido poucos. Não se incomodara a pegar no telefone para dizer a um e outro da lista que a mãe tinha na mesinha de cabeceira: olhe, morreu hoje, eram quase dez horas; o funeral é amanhã às quatro. E indicaria também o cemitério. Não o fizera. Deixara que cada um soubesse, se soubesse, e muitos nem teriam sabido. Diria, como disse: obrigada por tudo, mas estou a precisar de ficar comigo. E jogara-lhes beijinhos com os dedos que passara sobre a boca que não tinha pintado.

Clotilde decerto que iria encontrar a oportunidade de lhe dizer que tinha sido de muito mau tom este seu modo, mas Maria do Rosário caminhara rua abaixo e não lhe dera ouvidos.

Encontrara o guarda-sol, meio aberto, meio fechado, no chão de uma montra, e sentira-o tão abandonado quanto ela se sentia, depois que tudo tinha terminado. Entrara na loja, e ficara à espera que o empregado despachasse um senhor vestido com um fato num alinhado creme de muito bom corte. O senhor comprava garrafas e garrafões e tintas e pincéis e Maria do Rosário foi-o adivinhando de calções e camiseta de alcinhas a pintar os desvãos da sala e da cozinha.

Era uma loja com ar de drogaria antiga, e o guarda-sol estava jogado na montra entre cosméticos de marca duvidosa e latas de tinta.

O empregado colocou o guarda-sol num saco de pano com uma alça que ela jogou sobre o ombro esquerdo nem sabendo que, desse jeito simples, iria derramar cores de sangue sobre o casaquinho preto que, a mando, pusera por cima do vestido.

– Tu coloca ao menos uma écharpe sobre os ombros, tinha-lhe dito Clotilde a vê-la de vestido branco muito decotado.

E ela tinha vestido o casaquinho.

Que lhe daria um tom de luto, explicara-lhe Clotilde, sempre muito ciosa desses pormenores.

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Nº 2 - Fevereiro, 2016