Hatari! Revista de Cinema HATARI! #02 Teen Movies (2015) | Page 20
“Você disse uma vez que na vida
cada coisa é possível apenas em
um único momento. Tem razão.
Mas doze anos atrás, no dia em
que seguimos a Selvagem até
sua cabana, tudo era possível,
para você como para mim.”
Jules em Todas as Noites (Toutes
les Nuits, 2001), de Eugène Green
A ANGÚSTIA
“Boy if...I had one day when I didn’t have
to be all confused, and I didn’t have to feel
that I was ashamed of everything, if I felt that
I belonged someplace, you know? Then...” -
Jim em Juventude Transviada (Rebel Without
a Cause, 1955), de Nicholas Ray
Drama realista e comédia anedótica, Ga-
tinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984), de
John Hughes trata da infelicidade de Saman-
tha (Molly Ringwald) ao despertar na manhã
de seu aniversário de 16 anos. “It’s phisi-
cally impossible to me to get happy”, e essa
sua angústia tem três razões: o desconforto
com o corpo em crescimento (frustração e
projeção da feiura sobre si), o esquecimento
de toda sua família a respeito de seu aniver-
sário (sua irmã mais velha se casa no dia se-
guinte) e, sobretudo, a paixão aparentemente
não correspondida por Jake Ryan (Michael
Schoeffling), o cara mais bonito da escola e
namorado da prom queen. Os fatos conspi-
ram contra Sam: a visita dos avós amorosos
e sem-noção e do bizarro estudante de inter-
AO LADO: JAMES DEAN (JIM) EM JUVENTUDE TRANSVIADA (1955)
câmbio chinês, o ônibus geek como realida-
de e o carro como desejo, a inconveniente
abordagem amorosa do chefe dos geeks
(Anthony Michael Hall). No entanto, como
nota a amiga de Sam, com quem desabafa
seus sentimentos, é a pena de si mesma que
obseda a infelicidade.
A comédia de Gatinhas e Gatões nasce
da densificação ou exagero das característi-
cas do mundo, a caricatura (além de outros
recursos, como os efeitos de som paródicos,
ou o expediente fantástico: tudo acontecerá
ao longo da noite, especialmente com Geek.
Sua inépcia frente aos desejos se tornando
realidade é similar à da dupla de Mulher
Nota Mil). A apresentação da segunda festa,
the real party, na casa de Jake, começa com
uma calcinha no boneco do entregador e se-
gue para a casa coberta de papel higiênico;
mais tarde, uma pizza serve de disco no gra-
mofone. Com essa estilização anedótica, o
filme procede, nas arestas do drama de Sam,
com uma descrição cômica do universo dos
young americans dos anos oitenta, pelo qual
deambula Jake Ryan, sóbrio em sua própria
festa, cismado com Sam, enquanto esta pen-
sa nele durante o sono.
Antes, a festa da escola é para Sam o
momento de esperança e ápice do fracasso.
Os close-ups de Sam enquanto observa Jake
Ryan dançar com a namorada: os olhos deste
cruzam com os dela, ele sorri e Sam, em pâ-
nico, mais que desviar o olhar, gira, e no mo-
mento seguinte a esse primeiro mal-entendi-
do, o golpe fatal do destino com o segundo
ataque amoroso de Geek. Sam se refugia no
corredor vazio. O soco na portinhola vermelha
do extintor de incêndio, as lágrimas, o escorre-
gar para o chão, o ápice da angústia; duplicado
pelo isolamento no banco de carro da oficina
escolar, o som distante da festa, onde se dá um
novo encontro com Geek, desta vez momento
de análise consciente: contar a outro sobre a
própria angústia pode ser um tipo de alívio.
19