José Pacheco
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Quando penso na minha matriz , ou na matriz de mim , penso em alguma coisa cujo primeiro momento desapareceu , feita de factores que , como numa rara conjugação astral , talvez nunca mais se reúnam do mesmo modo , e por que me torno único ; não se trata de vaidade : por causa da " sua " matriz , cada um de nós é absolutamente único , e por ela responsável . Penso na morte como um desperdício . Superabundante natureza ( evitemos aqui o " Ó superabundante ", que seria excessivo ), que se dá ao luxo de devolver ao nada , o que levou tanto tempo a fazer nascer , filho de encontros de encontros que nunca mais se refarão , singularidade que de si poderá transmitir uma parte , mas , no que é autenticamente único , nunca se repetirá .
Quando penso na " minha " matriz , penso em África , Moçambique , no fulgor dos anos 60 ; na minha mãe , no meu pai , nos meus primos , naquele primo das aventuras improváveis e dos reencontros aguardados ; nos meus amigos , nos amores , nos embaraços , nas músicas , nos livros ; penso depois no " retorno ", na separação , no desespero , na reconstrução de mim , nos novos amigos , nos filhos . Eles são parte da minha matriz , tanto como espero fazer parte da sua . Até onde , na vida , se estende a matriz de uma pessoa ? Imagino uma matriz flexível , que se vai prolongando e acompanhando-a , com diferentes fases , mais do que um único momento original .
A palavra matriz é uma palavra riquíssima . As aproximações que permite são , portanto , inúmeras . Designa , na forma que me interessa mais , ou que tomo aqui , um conjunto de referências que , no seu cruzamento , constitui uma origem . O tema foi proposto pela psicóloga e psiquiatra Isabel Prado Castro ; nunca a vi pessoalmente . Falámos demoradamente ao telefone , naquela demora própria de pessoas cujas particularidades se entendem de imediato . E talvez , até , cujas matrizes se reconhecem . Mas isso seria presunção minha . Andava-lhe na peugada desde ainda antes da análise e do bailado que produziu em torno de um magnífico texto , que Elisa Costa Pinto publicara na Fluir ( n ° 6 ). Todo o telefonema foi vivido numa espécie de caos surrealista : interrupções abruptas , talvez um dos telemóveis ( o dela ou o meu ) sem rede , que recuperava momentaneamente , uma luz que apareceu no meu , e me cegava , quando carreguei inadvertidamente em qualquer botão , etc . Mas no meio do caos , um fio ia sendo retomado e definido : a Isabel explodindo ideias , propondo temas , eu reflectindo , pesando , contrapondo , ambos sem o medo dos primeiros encontros , que me tolhe sempre .
Também a Fluir tem uma matriz . São as revistas portuguesas , " em papel ", de artes , literatura e pensamento . Anos 70 , 80 .