Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 51

atrás da solidão , sem uma pessoa , nem uma cubata . As únicas vozes que se fazem ouvir são as do meu filho Kanjila , do meu irmão Mbandi e da minha irmã Fungi e repetem vezes sem conta : mataste-me com a tua ambição . Nunca perdi a aversão pela destruição inútil e , no entanto , a minha vida foi construída sobre essas e muitas outras mortes . O destino de quem vai morrer está ao abrigo de reveses e , para os meus súbditos , mesmo as minhas derrotas adquirem agora um esplendor de vitória . Nestas noites em que oiço os batuques , volto às vezes a ser o que era , correndo nas matas e , no capim , com os meus amigos da juventude . Só os jovens são capazes de viver momentos assim , em que o sonho nunca se recolhe . Só eles têm a audácia de conquistar o mundo . É dada a essas idades o privilégio de viver antecipadamente os dias da sua vida com plena esperança . Na juventude acreditamos que seremos capazes de tornar o impossível perfeitamente realizável . Estas palavras aplicam-se ainda mais a mim , Ginga , porque , tendo nascido mulher , as supremas aspirações de juventude deveriam reduzir-se a ser a primeira esposa de um makota , mesmo sendo a mais velha filha do Ngola Kiluangi . Porém , sempre recusei que me tratassem como mais uma mulher , sem valor próprio . Quando tinha doze anos , para horror da minha mãe , afirmei alto e bom som que viria a ser rainha . A velhice dá-nos a possibilidade de perceber que dentro dos factos há muitas histórias secretas e que em cada fase da vida existe uma narrativa interior a abrir-se constantemente para que a memória selecione o mais importante . No entanto , mesmo os traços de meu filho Kanjila , do meu irmão Mbandi e da minha irmã Fungi se esbateram . É isso que a morte faz , tira , tira , de modo que tudo o que fica nas nossas recordações é leve , rasto de cinza entornada .

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