Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 50

50 novas ordens . Exigi silêncio e pela expressão feroz do meu rosto , mesmo o mais distraído dos meus guerreiros percebeu que o ataque era para prosseguir . Ter-me-iam obedecido se tivesse mandado parar o cerco . Todos sabiam que mesmo que ganhássemos aos portugueses , aquela vitória não seria definitiva , nem tão pouco a nossa derrota valeria alguma coisa . Logo chegariam mais homens brancos e mais armas de fogo , contra as quais a coragem dos nossos guerreiros poderia não ser suficiente . A minha reputação era enorme e deveria ter imposto aos guerreiros a retirada . Algumas audácias imprudentes em si mesmas conseguiram mostrar aos portugueses que poderíamos vencer . Por isso , não consegui desistir dessa vitória tão próxima , cujo desfecho acabou por ser uma enorme derrota pessoal : a morte da minha irmã . Então uma manhã , já em Matamba , um manilumbo dos portugueses atravessou as nossas fronteiras , dizendo que tinha um cesto do capitão para entregar à rainha . Não sei como os meus capitães deixaram passar o emissário . Quando se aproximou , ajoelhou-se e estendeu-me o cesto . Era um antigo guerreiro jaga que se juntara ao inimigo . Reparei que o seu rosto estava crivado de tensão , que as mãos tremiam ao estender-me o que trouxera . Notei como os seus olhos fixos no chão se esqueciam de pestanejar . Afastei as enormes moscas que zuniam em volta e as folhas verdes que cobriam o conteúdo .

Tão inesperado como o que vi , foi o grito que não consegui suster . Lá dentro estava a cabeça ensanguentada de Fungi e tão desfigurada que nunca mais consegui lembrar-me do seu rosto intacto . Os traços dessa traição conservam-se visíveis ainda hoje : a imagem da minha irmã , que insiste em fitarme , só me aparece de cabeça cortada . E dos seus olhos semi-cerrados escorrem lágrimas de sangue . Os meus fantasmas pertencem ao alvorecer dos tempos , mas é de noite que o seu espírito me acusa pelos erros do meu passado . Do lado de fora da minha cubata , o meu povo dança , salta , grita , faz caretas aos espíritos das aves e dos animais , tentando afugentá-los numa vibrante refrega em minha honra . Homens e mulheres que se mortificam e rebolam na areia vermelha do largo , ao mesmo tempo que se lamentam em altos brados : “ Que vai ser de nós sem Ginga ?” As labaredas das fogueiras estão altas , ainda assim não me iluminam , porque o meu mundo deixou de ser terrestre e os gritos do meu povo vão ficando abafados e só ressoam de longe . Os meus fantasmas sobem carreiros e mais carreiros , uma rede de carreiros acima do alto capim e os seus pés espelham os meus percursos no meio de capim queimado , no meio do mato que sobe e desce por ravinas frescas ou por colinas pedregosas . Só os seus espectros podem perscrutar as encruzilhadas dos meus caminhos . Sou eu que me revejo a partir para todos esses percursos , seguindo